sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Um cego

Um cego

Não sei qual é a cara que me mira
Quando olho minha cara em um espelho;
Em seu reflexo não sei quem é o velho
Que me olha com cansada e muda ira.

Lento na sombra, com a mão exploro
As invisíveis rugas. Eis que assoma
Um lampejo. Vislumbro a tua coma
Que hoje é cinza ou ainda é de ouro.

Repito que perdi unicamente
A aparência superficial das cousas.
O consolo é de Milton e é potente,

Mas penso nas palavras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver-me a cara
Saberia quem sou na tarde rara.

 Jorge Luis Borges
 trad. de Augusto de Campos


Un ciego

No sé cuál es la cara que me mira
Cuando miro la cara del espejo;
No sé qué anciano acecha en su reflejo
Con silenciosa y ya cansada ira.

Lento en mi sombra, con la mano exploro
Mis invisibles rasgos. Un destello
Me alcanza. He vislumbrado tu cabello
Que es de ceniza o es aún de oro.

Repito que he perdido solamente
La vana superficie de las cosas.
El consuelo es de Milton y es valiente,

Pero pienso en las letras y en las rosas.
Pienso que si pudiera ver mi cara
Sabría quién soy en esta tarde rara.



BORGES, Jorge Luis. Quase Borges. 20 poemas e uma entrevista. Traduções de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Senhor D. João, quietinho, que me enfado:


Senhor D. João, quietinho, que me enfado:
beijar a mão é muito atrevimento;
abraçar-me… isso não, que me apoquento.
Cosquinhas… ai Joãozinho… e o pecado?

Como são maus os homens… mas cuidado
que me parece ouvir passos lá dentro…
não é ninguém… apressa o teu momento.
Ai que prazer… tão doce e regalado!

Jesus, sou uma louca, quem diria
que com um homem eu… sendo cristã
mas… que… de puro gozo… ai! vida minha!

Quanta vergonha… Vai-te… Queres mais?
O que tivestes não te satisfaz?
Oh meu Joãozinho, voltas amanhã?


Tomás de Iriarte (1750-1791)
Tradução de José Paulo Paes



Señor don Juan, quedito, que me enfado:
besar la mano es mucho atrevimiento;
abrazarme… don Juan, no lo consiento.
Cosquillas… ay Juanito… ¿y el pecado?

Qué malos son los ombres… mas, cuidado,
que me parece, Juan, que pasos siento…
no es nadie…, despachemos un momento.
¡Ay, qué placer… tan dulce y regalado!

Jesús, qué loca soy, quién lo creyera
que con un hombre yo… siendo cristiana
mas… que… de puro gusto… ¡ay… alma mia!

Ay, qué vergüenza, vete… ¿aún tienes gana?
Pues quando tú lo pruebes otra vez…
pero, Juanito, ¿volverás mañana?


Tomás de Iriarte (1750-1791)



Paes, José Paulo  Poesia Erótica em tradução, Companhia Das Letras, 1990.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Tantas constelações" / "Soviel Gestirne"

TANTAS CONSTELAÇÕES que
nos são oferecidas. Quando
para ti olhei -- foi quando? – estava
lá fora nesses
outros mundos.

Oh, estes caminhos, galácticos,
Oh, esta hora que nos
trouxe as noites lançando-as
na carga dos nossos nomes. Não
é verdade, bem o sei,
que tenhamos vivido, passou,
cego, apenas um sopro entre
Lá e Não-aqui e Às-vezes,
como um cometa, um olho passava vibrante
em busca de fogos extintos, nos desfiladeiros,
no lugar do lume a apagar-se estava
o tempo num esplendor de tetas,
e por ele acima e abaixo já
crescia e passava o que
é ou foi ou há-de ser –,

eu sei,
eu sei e tu sabes, nós sabíamos,
não sabíamos, nós
afinal estávamos aqui e não lá
e às vezes, quando
entre nós só havia o Nada, o nosso
encontro era perfeito.

Paul Celan:
Trad. João Barrento

SOVIEL GESTIRNE, die
man uns hinhält. Ich war,
als ich dich ansah – wann ? –,
draußen bei
den anderen Welten.

O diese Wege, galaktisch,
o diese Stunde, die uns
die Nächte herüberwog in
die Last unsrer Namen. Es ist,
ich weiß est, nicht wahr,
daß wir lebten, es ging
blind nur ein Atem zwischen
Dort und Nicht-da und Zuweilen,
kometenhaft schwirrte ein Aug
auf Erloschenes zu, in den Schluchten,
da, wo’s verglühte, stand
zitzenprächtig die Zeit,
an der schon empor- und hinab-
und hinwegwuchs, was
ist oder war oder sein wird -,

ich weiß,
ich weiß und du weißt, wir wußten,
wir wußten nicht, wir
waren ja da und nicht dort,
und zuweilen, wenn
nur das Nichts zwischen uns stand, fanden
wir ganz zueinander.



CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996

sábado, 14 de dezembro de 2013

Poema de Natal

Rio de Janeiro , 1946

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:

Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:

Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A tabacaria

           TABACARIA

        Não sou nada.
        Nunca serei nada.
        Não posso querer ser nada.
        À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


        Janelas do meu quarto,
        Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
        (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
        Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
        Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
        Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
        Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
        Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
        Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


        Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
        Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
        E não tivesse mais irmandade com as coisas
        Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
        A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
        De dentro da minha cabeça,
        E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


        Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
        Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
        À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
        E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


        Falhei em tudo.
        Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
        A aprendizagem que me deram,
        Desci dela pela janela das traseiras da casa.
        Fui até ao campo com grandes propósitos.
        Mas lá encontrei só ervas e árvores,
        E quando havia gente era igual à outra.
        Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


        Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
        Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
        E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
        Gênio? Neste momento
        Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
        E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
        Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
        Não, não creio em mim.
        Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
        Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
        Não, nem em mim...
        Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
        Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
        Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
        Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
        E quem sabe se realizáveis,
        Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
        O mundo é para quem nasce para o conquistar
        E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
        Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
        Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
        Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
        Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
        Ainda que não more nela;
        Serei sempre o que não nasceu para isso;
        Serei sempre só o que tinha qualidades;
        Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
        E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
        E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
        Crer em mim? Não, nem em nada.
        Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
        O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
        E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
        Escravos cardíacos das estrelas,
        Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
        Mas acordamos e ele é opaco,
        Levantamo-nos e ele é alheio,
        Saímos de casa e ele é a terra inteira,
        Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


        (Come chocolates, pequena;
        Come chocolates!
        Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
        Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
        Come, pequena suja, come!
        Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
        Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
        Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

        Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
        A caligrafia rápida destes versos,
        Pórtico partido para o Impossível.
        Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
        Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
        A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
        E fico em casa sem camisa.


        (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
        Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
        Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
        Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
        Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
        Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
        Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
        Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
        Meu coração é um balde despejado.
        Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
        A mim mesmo e não encontro nada.
        Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
        Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
        Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
        Vejo os cães que também existem,
        E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
        E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


        Vivi, estudei, amei e até cri,
        E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
        Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
        E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
        (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
        Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
        E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

        Fiz de mim o que não soube
        E o que podia fazer de mim não o fiz.
        O dominó que vesti era errado.
        Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
        Quando quis tirar a máscara,
        Estava pegada à cara.
        Quando a tirei e me vi ao espelho,
        Já tinha envelhecido.
        Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
        Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
        Como um cão tolerado pela gerência
        Por ser inofensivo
        E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


        Essência musical dos meus versos inúteis,
        Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
        E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
        Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
        Como um tapete em que um bêbado tropeça
        Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


        Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
        Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
        E com o desconforto da alma mal-entendendo.
        Ele morrerá e eu morrerei.
        Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
        A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
        Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
        E a língua em que foram escritos os versos.
        Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
        Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
        Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


        Sempre uma coisa defronte da outra,
        Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
        Sempre o impossível tão estúpido como o real,
        Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
        Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

        Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
        E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
        Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
        E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


        Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
        E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
        Sigo o fumo como uma rota própria,
        E gozo, num momento sensitivo e competente,
        A libertação de todas as especulações
        E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


        Depois deito-me para trás na cadeira
        E continuo fumando.
        Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


        (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
        Talvez fosse feliz.)
        Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
        O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
        Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
        (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
        Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
        Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
        Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
    Álvaro de Campos, 15-1-1928
    heterônimo de Fernando Pessoa

domingo, 1 de dezembro de 2013

Salto

Se alguma pedra pudesse tornar-se lírio
seria esta
Se alguma pedra o salto de um tigre
e não o tigre
seria esta
alguma as letras do alfabeto
seria esta
esta só pontas
que pulsa
 coração da casa
que acabas de deixar
para sempre

 AZEVEDO, Carlito. Sublunar. Rio de Janeiro: 7 Letras

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Estava deitado...


Estava deitado...

Estava deitado dormitando sob
uma árvore quando me despertou
o rumor de uns ramos e vi
passar um homem voando;
mas agora que o digo, talvez fosse
um pássaro.



M'estava ajaçat...

M'estava ajaçat dormitant sota
un arbre quan em va despertar
un soroll de branques i vaig veure
que passava un home volant;
però, ara que ho dic, potser era
un ocell.







Tradução de Antonio Cicero

BROSSA, Joan. Poemes de Joan Brossa (antologia). Madrid: Ediciones Libertarias, 1983.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A companhia dos amigos


O jogo estava marcado para as 10 horas, mas começou quase 11. O time de Ipanema e Leblon tinha alguns elementos de valor, como Aníbal Machado, Vinícius de Morais, Lauro Escorel, Carlos Echenique, o desenhista Carlos Thiré, e um cunhado do Aníbal que era um extrema-direita tão perigoso que fui obrigado a lhe dar uma traulitada na canela para diminuir-lhe o entusiasmo.

Eu era beque do Copacabana e atrás de mim o guardião e pintor Di Cavalcanti. Na linha média e na atacante jogavam um tanto confusamente Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Newton Freitas, Moacir Werneck de Castro, o escultor Pedrosa o crítico Paulo Mendes Campos.

Não havia juiz, o que facilitou, muito a movimentação da peleja, que se desenrolou em três tempos, ficando convencionado que houve dois jogos. Copacabana venceu o primeiro por 1x0 (houve um gol anulado porque Di Cavalcanti declarou que passara por cima da trave; e, como não havia trave, ninguém pôde desmentir).

O segundo jogo também vencemos, por 2 a 1. Esse 1 deles foi feito passando sobre o meu cadáver. Senti um golpe no joelho, outro nos rins e outro na barriga; elevei-me no ar e me abati na areia, tendo comido um pouco da mesma.

A torcida era composta de variegadas senhoras que ficavam sob as barracas e chupavam melancia. 

Uma saída do center-forward Schmidt (passando a bola gentilmente para trás, para o center-half) e uma defesa de Echenique foram os instantes de maior sensação.
Carlos Drummond de Andrade deixou de comparecer, assim como outros jogadores do Copacabana, como Sérgio Buarque de Holanda e Chico Assis Barbosa.

Afonso Arinos de Melo Franco jogará também no próximo encontro, em que o Leblon terá o reforço de Fernando Tude e Édison Carneiro, além de Otávio Dias Leite e outros. Joel Silveira mora em Botafogo, mas como sua casa é perto do Túnel Velho jogará no Copacabana.

Assim nos divertimos nós, os cavalões, na areia.

As mulheres riam de nosso “prego". Suados, exautos de correr sob o sol terrível na areia quente e funda, éramos ridículos e lamentáveis, éramos todos profundamente derrotados. Ah, bom tempo em que eu jogava um jogo inteiro - um meia-direita medíocre mas furiosa - e ainda ia para casa chutando toda pedra que encontrava no caminho.

Depois mergulhamos na água boa e ficamos ali, uns 30 homens e mulheres, rapazes e moças, a bestar e conversar na praia. Doce é a companhia dos amigos; doce é a visão das mulheres em seus maiôs, doce é a sombra das barracas; e ali ficamos debaixo do sol, junto do mar, perante as montanhas azuis.
Ah, roda de amigos e mulheres, esses momentos de praia serão mais tarde momentos antigos. Um pensamento horrivelmente besta, mas doloroso. Aquele amará aquela, aqueles se separarão; uns irão para longe, uns vão morrer de repente, uns vão ficar inimigos.

Um atraiçoará, outro fracassará amargamente, outro ainda ficará rico, distante e duro. E de outro ninguém mais ouvirá falar, e aquela mulher que está deitada, rindo tanto sua risada clara, o corpo molhado, será aflita e feia, azeda e triste.

E houve o Natal. Os Bragas jamais cultivaram com muito ardor o Natal; lembro-me que o velho sempre gostava de reunir a gente num jantar, mas a verdade é que sempre faltava um ou outro no dia.
Nossas grandes festas eram São João e São Pedro - em São João havia fogueira no quintal, perto do grande pé de fruta-pão, e em São Pedro, padroeiro da cidade, havia uma tremenda batalha Naval aérea inesquecível de fogos de artifício. Hoje não há mais nem São João, nem São Pedro, e continua não havendo Natal.

Tomei um suco de laranja e fui dormir. A cidade estava insuportável, com milhões de pessoas na rua, os caixeiros exaustos, os preços arbitrários, o comércio, com o perdão da palavra, lavando a égua, se enchendo de dinheiro. Terá nascido Cristo para todo ano dar essa enxurrada de dinheiro aos senhores comerciantes, que já em novembro começam a espreitar o pequenino berço na estrebaria com um olhar cúpido?

Atravessarei o ano na casa fraterna de Vinícius de Moraes. Estaremos com certeza bêbedos e melancólicos - mas, em todo caso, meus amigos, se eu não ficar melancólico farei ao menos tudo para ficar bêbedo. Como passam anos! 

Ultimamente têm passado muitos anos. Mas não falemos nisso.

Dezembro, 1945

Rubem Braga

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A Morte virá e Terá os Teus Olhos

A morte virá e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
da manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês cada manhã
quando, sob ti só, pendes
no espelho. Oh, que esperança,
nesse dia saberemos, também nós,
que és a vida e és o nada.

A morte tem um olhar para todos.
A morte virá e terá os teus olhos.
Será como deixar um vício,
como ver no espelho
ressurgir uma face morta,
como ouvir os lábios fechados.
Desceremos mudos ao abismo.


Cesare Pavese
Tradução de José Carlos Brandão

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi-
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Così li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla

Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O mar mistura-se ao mar

O mar mistura-se ao mar
Mescla os seus laços, lagos, poças
Suas idéias de gaivotas e de espumas
Seus sonhos de algas e alcatrazes
Aos graves crisântemos azuis ao largo
Aos miosótis em tufos nos muros alvos das ilhas
Às equimoses do horizonte, aos faróis apagados
Aos sonhos do céu impenetrável.



La mer se mêle avec la mer
Mélange ses lacs et ses flaques
Ses idées de mouettes et d'écumes
Ses rêves d'algues et de cormorans
Aux lourds chrysanthèmes bleus du large
Aux myosotis en touffes sur les murs blancs des îles
Aux ecchymoses de l'horizon, aux phares éteints
Aux songes du ciel impénétrable




De: MAULPOIX, Jean-Michel. "La mer se mêle avec la mer". In: LARANJEIRA, Mário (seleção, tradução e introdução). Poetas de França hoje. São Paulo: Edusp / Fapesp, 1996.

domingo, 13 de outubro de 2013

Templo da Barra

O verde dos bambus mais altos é azul
ou então é o céu que pousa nos seus ramos.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Relógio

Relógio

Dama pequeníssima
moradora no coração de um pássaro
sai na alba a pronunciar uma sílaba
                         NÃO


RELOJ 

Dama pequeñísima
moradora en el corazón de un pájaro
sale al alba a pronunciar una sílaba
                     NO

Alejandra Pizarnik

Tradução de João Alexandre Sartorelli 


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Manhã de Domingo

Manhã de Domingo



1.



Complacência de penhoar, café

E laranjas ao sol das onze horas,

Verde indolência de uma cacatua

No tapete – isso ajuda a dissipar

O santo silêncio do sacrifício.

Mas ela sonha, e sente aproximar-se,

Escura e lenta, a catástrofe antiga,

Como o descer da noite sobre as águas.

O odor das frutas, o brilho de asas verdes

Virão talvez da procissão dos mortos,

Que atravessa as águas, silenciosa.

Aquietou-se para dar passagem

A seus pés sonhadores sobre os mares

A Terra Santa de sangue e sepulcro.







2.



Por que legar aos mortos o que é seu?

O que é o divino, se se manifesta

Somente em sonhos, sombras silenciosas?

Por que não encontrar prazer no sol,

No odor das frutas, brilho de asas verdes,

Em qualquer outro bálsamo terreno,

Tão caro quanto o próprio paraíso?

É nela que o divino há de viver:

Paixões chuvosas, cismas de nevascas,

Negras solidões, gozos incontidos

Quando a floresta se abre em flor; lufadas

De emoção em noites frescas de outono;

Toda dor e delícia; gordos ramos

De verão, galhos desnudos de inverno.

Estes, os ritmos próprios de sua alma.





3.



Nas nuvens nasceu Jove, o não-humano,

Que mãe não aleitou, e em relva fresca

Com passos divinais jamais pisou.

Caminhou entre nós, um rei absorto,

Magnífico, portento entre os humildes,

Até que sangue humano e virginal

Mesclou-se ao céu, anseio tão intenso

Que o viram os mais humildes, numa estrela.

Quem sabe nosso sangue ainda virá

A ser do paraíso? Será a terra

O único paraíso possível?

O céu ainda será nosso aliado,

Na dor e no cansaço, quase igual

Em glória ao próprio amor imorredouro,

Não mais um muro indiferente e azul.




4.



Diz ela: “Quando os pássaros questionam

Com cantos matinais a realidade

Dos campos enevoados, sou feliz;

Mas quando vão-se embora, e vai-se junto

Toda a paisagem, onde o paraíso?”.

Não há nenhuma negra profecia,

Não há quimera sepulcral tampouco,

Nem ilha melodiosa, habitada

Por espíritos, nem doce eldorado

No sul, nem palmeira em longínqua névoa

De outeiro no céu, que perdure mais

Do que o verdor da primavera, mais

Que a lembrança de uma manhã com pássaros,

Ou um desejo de tarde de verão

Consumada em asas de andorinhas.




5.



Diz ela: “Ainda assim, sei que preciso

De alguma alegria imperecível”.

A morte é a mãe do belo, e só a morte

Satisfaz nossos sonhos e desejos.

Ainda que ela espalhe as folhas secas

Do aniquilamento a nossa frente

Pelo caminho da dor, pelos muitos

Caminhos onde exultou a vitória,

Ou onde o amor sussurrou sua ternura,

Faz o salgueiro estremecer ao sol,

Para moças que antes sonhavam na relva

E agora se levantam. Faz rapazes

Juntarem maçãs e ameixas novas

Num prato esquecido. As moças provam,

E apaixonadas andam sobre folhas.




6.



Não haverá morte no paraíso?

Não cairá a fruta madura? Os galhos

Hão de ficar para sempre carregados

Naquele céu perfeito e imutável,

E ao mesmo tempo semelhante ao mundo

Mortal, com rios que buscam sempre mares

Que nunca hão de tocar com lábios mudos?

De que servem as maças nessas margens?

Por que adoçar com ameixas aquelas praias?

Que triste, lá brilharem nossas cores,

Tecer-se a seda de nossas manhãs,

Soarem nossos violões insípidos!

A morte é a mãe de todo o belo, mística,

E no seu seio cálido sonhamos

A mãe terrena, insone, a nossa espera.





7.



Homens ágeis e alegres, de mãos dadas,

Numa manhã de verão, em plena orgia,

Hão de cantar em devoção ao sol,

Não como deus, mas como um deus seria,

Nu entre eles, uma fonte bárbara.

E seu canto há de ser paradisíaco,

Saído do seu sangue para o céu;

E em seu canto entrará, em cada voz,

O lago que deleita o seu senhor,

As árvores seráficas, e os montes

Por muito tempo a repetir sua música.

Conhecerão a sagrada irmandade

De homens mortais e estivais manhãs.

E de onde vieram, e para onde irão,

O orvalho em seu pés indicará.





8.



Ela ouve, nas águas silenciosas,

Uma voz gritar: “O Santo Sepulcro

Não é alpendre onde repousem espíritos,

É o túmulo onde jazeu Jesus”.

Vivemos nesse velho caos de sol,

Ou velha servidão de noite e dia,

Ou solidão de ilha, livre e solta,

De águas silenciosas e implacáveis.

Cervos andam pelos montes; codornas

Assobiam, espontâneas; e nas matas

Amoras silvestres amadurecem.

E, no isolamento do azul,

Ao entardecer, pombas revoam a esmo,

Fazendo ondulações ambíguas, vagas,

Em direção à sombra, com suas asas.



.

Sunday Morning


I



Complacencies of the peignoir, and late

Coffee and oranges in a sunny chair,

And the green freedom of a cockatoo

Upon a rug mingle to dissipate

The holy hush of ancient sacrifice.

She dreams a little, and she feels the dark

Encroachment of that old catastrophe,

As a calm darkens among water-lights.

The pungent oranges and bright, green wings

Seem things in some procession of the dead,

Winding across wide water, without sound.

The day is like wide water, without sound,

Stilled for the passing of her dreaming feet

Over the seas, to silent Palestine,

Dominion of the blood and sepulchre.





II



Why should she give her bounty to the dead?

What is divinity if it can come

Only in silent shadows and in dreams?

Shall she not find in comforts of the sun,

In pungent fruit and bright, green wings, or else

In any balm or beauty of the earth,

Things to be cherished like the thought of heaven?

Divinity must live within herself:

Passions of rain, or moods in falling snow;

Grievings in loneliness, or unsubdued

Elations when the forest blooms; gusty

Emotions on wet roads on autumn nights;

All pleasures and all pains, remembering

The bough of summer and the winter branch.

These are the measures destined for her soul.





III



Jove in the clouds had his inhuman birth.

No mother suckled him, no sweet land gave

Large-mannered motions to his mythy mind.

He moved among us, as a muttering king,

Magnificent, would move among his hinds,

Until our blood, commingling, virginal,

With heaven, brought such requital to desire

The very hinds discerned it, in a star.

Shall our blood fail? Or shall it come to be

The blood of paradise? And shall the earth

Seem all of paradise that we shall know?

The sky will be much friendlier then than now,

A part of labor and a part of pain,

And next in glory to enduring love,

Not this dividing and indifferent blue.





IV



She says, “I am content when wakened birds,

Before they fly, test the reality

Of misty fields, by their sweet questionings;

But when the birds are gone, and their warm fields

Return no more, where, then, is paradise?”

There is not any haunt of prophesy,

Nor any old chimera of the grave,

Neither the golden underground, nor isle

Melodious, where spirits gat them home,

Nor visionary south, nor cloudy palm

Remote on heaven’s hill, that has endured

As April’s green endures; or will endure

Like her remembrance of awakened birds,

Or her desire for June and evening, tipped

By the consummation of the swallow’s wings.




V



She says, “But in contentment I still feel

The need of some imperishable bliss.”

Death is the mother of beauty; hence from her,

Alone, shall come fulfilment to our dreams

And our desires. Although she strews the leaves

Of sure obliteration on our paths,

The path sick sorrow took, the many paths

Where triumph rang its brassy phrase, or love

Whispered a little out of tenderness,

She makes the willow shiver in the sun

For maidens who were wont to sit and gaze

Upon the grass, relinquished to their feet.

She causes boys to pile new plums and pears

On disregarded plate. The maidens taste

And stray impassioned in the littering leaves.





VI



Is there no change of death in paradise?

Does ripe fruit never fall? Or do the boughs

Hang always heavy in that perfect sky,

Unchanging, yet so like our perishing earth,

With rivers like our own that seek for seas

They never find, the same receding shores

That never touch with inarticulate pang?

Why set the pear upon those river banks

Or spice the shores with odors of the plum?

Alas, that they should wear our colors there,

The silken weavings of our afternoons,

And pick the strings of our insipid lutes!

Death is the mother of beauty, mystical,

Within whose burning bosom we devise

Our earthly mothers waiting, sleeplessly.





VII



Supple and turbulent, a ring of men

Shall chant in orgy on a summer morn

Their boisterous devotion to the sun,

Not as a god, but as a god might be,

Naked among them, like a savage source.

Their chant shall be a chant of paradise,

Out of their blood, returning to the sky;

And in their chant shall enter, voice by voice,

The windy lake wherein their lord delights,

The trees, like serafin, and echoing hills,

That choir among themselves long afterward.

They shall know well the heavenly fellowship

Of men that perish and of summer morn.

And whence they came and whither they shall go

The dew upon their feet shall manifest.




VIII



She hears, upon that water without sound,

A voice that cries, “The tomb in Palestine

Is not the porch of spirits lingering.

It is the grave of Jesus, where he lay.”

We live in an old chaos of the sun,

Or old dependency of day and night,

Or island solitude, unsponsored, free,

Of that wide water, inescapable.

Deer walk upon our mountains, and the quail

Whistle about us their spontaneous cries;

Sweet berries ripen in the wilderness;

And, in the isolation of the sky,

At evening, casual flocks of pigeons make

Ambiguous undulations as they sink,

Downward to darkness, on extended wings.



Wallace Stevens

Tradução de Paulo Henriques Britto

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Sobre um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Hélder

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Ai, dona fea! Foste-vos queixar

Ai, dona fea! Foste-vos queixar
que vos nunca louv'en meu trobar;
mas ora quero fazer um cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Ai, dona fea! Se Deus me pardon!
pois avedes [a] tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!

João Garcia de Guilhade

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A um Poeta

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Antero de Quental

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Não vás tão docilmente nessa noite linda

Não vás tão docilmente nessa noite linda;
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendiaria,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda.
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.


Do not go gentle into that good night, 
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn , too late, they grieved it on its way
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, em now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.



THOMAS, Dylan. "Do not go gentle into that good night". In: CAMPOS, Augusto de (trad. e org.). Poesia da recusa.  São Paulo: Perspectiva, 2006.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Carta

Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Pianistas

1

enquanto ele tocava complicados cappricios em frente de uma auditório escurecido,
ninguém reparou que a sua face ardia e das suas omoplatas uma sombra negra emergia.
e depois ele estacou à chuva enfrentando caras que eram mãos franzidas.
e então nós? perguntaste e logo eu tentei pôr ordem nas coisas,
coisas que se dispersavam por todo o lado na vazante da linguagem.
o que resta quando acertamos as contas com a solidão de anos?
quem habita os nossos quartos quando nós os abandonamos?
e tu? tens algum segredo escondido na manga?
sobre a chave branca como a parte visível do icebergue;
sobre o silêncio que rasga colchões em pedaços.
mais tarde nessa noite, resultados, jornais e cadeiras – tudo espalhado no chão do quarto
cobrindo as passagens, ligando a mais escura das profundidades.
eu sei, todas as noites baixavas a tua cara
dentro dessa mina de pedra.


2

somos convidados para uma festa calma, lavando a loiça,
arrumando as pratas em caixas cobertas com veludo,
quando as cadeiras já foram levantadas para cima das mesas e as constelações já se extinguiram.

aqui estamos, dois vagabundos a tentar habitar os corações.

eu, um pianista louco, tu, uma criada neste mistério das coisas.


Arvis Viguls

Tradução de Luís Filipe Cristóvão

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O Pão / Le pain

O Pão

A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas... E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, - sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo. Logo que o pão endurece essas flores murcham murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser a nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.



Le pain

La surface du pain est merveilleuse d'abord à cause de cette impression quasi panoramique qu'elle donne : comme si l'on avait à disposition sous la main les Alpes, le Taurus ou la Cordillère des Andes.
Ainsi donc une masse amorphe en train d'éructer fut glissée pour nous dans le four stellaire, où durcissant elle s'est façonnée en vallées, crêtes, ondulations, crevasses... Et tous ces plans dès lors si nettement articulés, ces dalles minces où la lumière avec application couche ses feux, sans un regard pour la mollesse ignoble sous-jacente.
Ce lâche et froid sous-sol que l'on nomme la mie a son tissu pareil à celui des éponges : feuilles ou fleurs y sont comme des sœurs siamoises soudées par tous les coudes à la fois.
Lorsque le pain rassit ces fleurs fanent et se rétrécissent : elles se détachent alors les unes des autres, et la masse en devient friable...
Mais brisons-la : car le pain doit être dans notre bouche moins objet de respect que de consommation.



PONGE, Francis. Alguns poemas. Seleção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Lisboa: Cotovia, 1996.

domingo, 25 de agosto de 2013

Já está conosco a chuva

Já está conosco a chuva,
sacode o ar silencioso.
As andorinhas riscam as águas paradas
junto às lagoas lombardas,
voam como gaivotas catando peixes;
o feno cheira além do espaço das hortas.

Ainda um ano queimado,
sem um lamento, sem um grito
que inesperadamente vença um dia.


Già la pioggia è con noi,
scuote l’aria silenziosa.
Le rondini sfiorano le acque spente
presso i laghetti lombardi,
volano come gabbiani sui piccoli pesci;
il fieno odora oltre i recinti degli orti.

Ancora un anno è bruciato,
senza un lamento, senza un grido
levato a vincere d’improvviso un giorno.

QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Edição bilingue. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 10 de julho de 2013

"Pena de coisas que nem sei" / "Dolore di cose che ignoro"


 Pena de coisas que nem sei
 
Densa de brancas e de negras raízes
cheira a fermento e a vermes
a terra talhada d´água.

Pena de coisas que nem sei
em mim rebenta: não basta uma morte
se, escuta, mais vezes me pesa
no coração, com sua relva, um pedaço de terra.


Salvatore Quasimodo
Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti


Dolore di cose che ignoro

Fitta di bianche e di nere radici
di lievito odora e lombrichi;
tagliata dall’acque la terra.

Dolore di cose che ignoro
mi nasce: non basta una morte
se ecco più volte mi pesa
con l’erba, sul cuore, una zolla.

Salvatore Quasimodo



QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Ao Braço do Mesmo Menino Jesus Quando Apareceu


O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.

Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.


O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.


Gregório de Matos

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Esta noite


Esta noite
Versa, 22 de maio de 1916

Balaustrada de brisa
para apoiar nesta noite
minha melancolia

Giuseppe Ungaretti
Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti



Stasera
Versa il 22 maggio 1916

Balaustrata di brezza
per appoggiare stasera
la mia malinconia


Giuseppe Ungaretti



UNGARETTI, Giuseppe. A alegria. Edição bilingue. Trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2003

terça-feira, 2 de julho de 2013

A alma minha gentil que agora parte

A alma minha gentil que agora parte
Tão cedo deste mundo à outra vida,
Terá certo no céu grata acolhida,
Indo habitar sua mais beata parte.

Ficando entre o terceiro lume e Marte,
Será a vista do sol escurecida,
Virá depois, muita alma ao céu subida,
Vê-la – portento de natural e arte.

E se pousasse entre Mercúrio e Luz,
Brilhara mais do que eles nossa bela,
Como só se espalhara a fama sua.

A Marte certo não chegara ela.
Mas se mais alto o seu vulto flutua,
Vencera Jove e qualquer outra estrela.

Petrarca

Tradução de Jamir Almansur Haddad



Questa anima gentil che si diparte,
anzi tempo chiamata a l’altra vita,
se lassuso è quanto esser dê gradita,
terrà del ciel la piú beata parte.


S’ella riman fra ’l terzo lume et Marte,5
fia la vista del sole scolorita,
poi ch’a mirar sua bellezza infinita
l’anime degne intorno a lei fien sparte.

Se si posasse sotto al quarto nido,
ciascuna de le tre saria men bella,10
et essa sola avria la fama e ’l grido;

nel quinto giro non habitrebbe ella;
ma se vola piú alto, assai mi fido
che con Giove sia vinta ogni altra stella.

Petrarca

segunda-feira, 1 de julho de 2013

O Barco Bêbado

 O Barco Bêbado

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia,
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico
viam turbilhonar marés de verde e anil.

O vento abençoou minhas manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos,
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.

Então eu mergulhei nas águas do Poema
do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,
Devorando os azuis, onde às vezes – dilema
Lívido – um afogado afunda lentamente;

Onde, tingindo azulidades com quebrantos
E ritmos lentos sob o rutilante albor,
Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos,
fermentam de amargura as rubéolas do amor!

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,
Ressacas e marés: conheço o entardecer,
A Aurora em explosão como um bando de pombas,
E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Iluminando os longos glaciais;
Como atrizes senis em palcos cabalísticos,
Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais!

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,
Soube a circulação das seivas suculentas
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

Por meses eu segui, tropel de vacarias
Histéricas, o mar estuprando as areias,
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias!

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas
Com olhos de jaguar florindo em epidermes
De homens! Arco-íris tensos como bridas
No horizonte do mar de glaucos paquidermes.

Vi fermentarem pântanos imensos, ansas
Onde apodrecem Leviatãs distantes!
O desmoronamento da água nas bonanças
E abismos a se abrir no caos, cataratantes!

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!
Náufragos abissais na tumba dos negrumes,
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!

Ah! se as crianças vissem o dourar das ondas,
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...
– As espumas em flor ninaram minhas rondas
E as brisas da ilusão me alaram por instantes.

Mártir de pólos e de zonas misteriosas,
O mar a soluçar cobria os meus artelhos
Com flores fantasmais de pálidas ventosas
e eu, como uma mulher, me punha de joelhos...

Quase ilha a balouçar entre borras e brados
De gralhas tagarelas com olhar de gelo,
Eu vogava, e por minha rede os afogados
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo.

Mas eu, barco perdido em baías e danças,
Lançado no ar sem pássaros pela torrente,
De quem os Monitores e os arpões das Hansas
Não teriam pescado o casco de água ardente;

Livre, fumando em meio às virações inquietas,
Eu que furava o céu violáceo como um muro
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,
Líquens de sol vômitos de azul escuro;

Prancha louca a correr com lúnulas e faíscas
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,
Quando os sóis estivais estilhaçam em riscas
O céu ultramarino e seus funis de bruma;

Eu que tremia ouvindo, ao longe, a estertorar,
O cio dos Behemóts e dos Maelstroms febris,
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar,
Anseio pela Europa e os velhos peitoris!

Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas
Que o delírio dos céus desvela ao viajor:
– É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!
Toda lua é cruel e todo sol, engano:
O amargo amor opiou de ócios minhas horas.
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

Da Europa a água que eu quero é só o charco
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
trêmulo como a asa de uma borboleta.

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

Arthur Rimbaud
(Tradução de Augusto de Campos)


Le bateau ivre

Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs :
Des Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles,
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

J'étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages,
Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais.

Dans les clapotements furieux des marées,
Moi, l'autre hiver, plus sourd que les cerveaux d'enfants,
Je courus ! Et les Péninsules démarrées
N'ont pas subi tohu-bohus plus triomphants.

La tempête a béni mes éveils maritimes.
Plus léger qu'un bouchon j'ai dansé sur les flots
Qu'on appelle rouleurs éternels de victimes,
Dix nuits, sans regretter l'oeil niais des falots !

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sûres,
L'eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin.

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d'astres, et lactescent,
Dévorant les azurs verts ; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend ;

Où, teignant tout à coup les bleuités, délires
Et rhythmes lents sous les rutilements du jour,
Plus fortes que l'alcool, plus vastes que nos lyres,
Fermentent les rousseurs amères de l'amour !

Je sais les cieux crevant en éclairs, et les trombes
Et les ressacs et les courants : je sais le soir,
L'Aube exaltée ainsi qu'un peuple de colombes,
Et j'ai vu quelquefois ce que l'homme a cru voir !

J'ai vu le soleil bas, taché d'horreurs mystiques,
Illuminant de longs figements violets,
Pareils à des acteurs de drames très antiques
Les flots roulant au loin leurs frissons de volets !

J'ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies,
Baiser montant aux yeux des mers avec lenteurs,
La circulation des sèves inouïes,
Et l'éveil jaune et bleu des phosphores chanteurs !

J'ai suivi, des mois pleins, pareille aux vacheries
Hystériques, la houle à l'assaut des récifs,
Sans songer que les pieds lumineux des Maries
Pussent forcer le mufle aux Océans poussifs !

J'ai heurté, savez-vous, d'incroyables Florides
Mêlant aux fleurs des yeux de panthères à peaux
D'hommes ! Des arcs-en-ciel tendus comme des brides
Sous l'horizon des mers, à de glauques troupeaux !

J'ai vu fermenter les marais énormes, nasses
Où pourrit dans les joncs tout un Léviathan !
Des écroulements d'eaux au milieu des bonaces,
Et les lointains vers les gouffres cataractant !

Glaciers, soleils d'argent, flots nacreux, cieux de braises !
Échouages hideux au fond des golfes bruns
Où les serpents géants dévorés des punaises
Choient, des arbres tordus, avec de noirs parfums !

J'aurais voulu montrer aux enfants ces dorades
Du flot bleu, ces poissons d'or, ces poissons chantants.
- Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades
Et d'ineffables vents m'ont ailé par instants.

Parfois, martyr lassé des pôles et des zones,
La mer dont le sanglot faisait mon roulis doux
Montait vers moi ses fleurs d'ombre aux ventouses jaunes
Et je restais, ainsi qu'une femme à genoux...

Presque île, ballottant sur mes bords les querelles
Et les fientes d'oiseaux clabaudeurs aux yeux blonds.
Et je voguais, lorsqu'à travers mes liens frêles
Des noyés descendaient dormir, à reculons !

Or moi, bateau perdu sous les cheveux des anses,
Jeté par l'ouragan dans l'éther sans oiseau,
Moi dont les Monitors et les voiliers des Hanses
N'auraient pas repêché la carcasse ivre d'eau ;

Libre, fumant, monté de brumes violettes,
Moi qui trouais le ciel rougeoyant comme un mur
Qui porte, confiture exquise aux bons poètes,
Des lichens de soleil et des morves d'azur ;

Qui courais, taché de lunules électriques,
Planche folle, escorté des hippocampes noirs,
Quand les juillets faisaient crouler à coups de triques
Les cieux ultramarins aux ardents entonnoirs ;

Moi qui tremblais, sentant geindre à cinquante lieues
Le rut des Béhémots et les Maelstroms épais,
Fileur éternel des immobilités bleues,
Je regrette l'Europe aux anciens parapets !

J'ai vu des archipels sidéraux ! et des îles
Dont les cieux délirants sont ouverts au vogueur :
- Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t'exiles,
Million d'oiseaux d'or, ô future Vigueur ?

Mais, vrai, j'ai trop pleuré ! Les Aubes sont navrantes.
Toute lune est atroce et tout soleil amer :
L'âcre amour m'a gonflé de torpeurs enivrantes.
Ô que ma quille éclate ! Ô que j'aille à la mer !

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache
Noire et froide où vers le crépuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesse, lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.

Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.

Arthur Rimbaud

sábado, 29 de junho de 2013

RETRATO

RETRATO

Minha infância: memórias de um pátio de Sevilha,
e de um horto claro onde madura o limoeiro;
juventude, vinte anos em terras de Castilha;
a minha história quero esquecer por inteiro.
Mañara, nem Bradomín hei sido
— já conheceis meu torpe alinho indumentário —
mas recebi a flecha que me apontou Cupido,
e amei quanto elas possam ter de hospitalário.
Tenho nas veias gotas de estirpe jacobina,
mas o meu verso brota de manancial sereno;
e, mais que o homem usual que sabe sua doutrina,
eu sou um homem bom, um homem sem veneno.
Adoro a formosura, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do jardim de Ronsard;
mas não amo os enfeites da moderna cosmética,
nem sou uma ave dessas do novo gay-trinar.
Eu desdenho as romanças desses tenores pecos
e dos grilos o coro a cantar ao luar.
Procuro distinguir entre as vozes e os ecos,
e entre as vozes só escuto a que prefiro amar.
Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar quisera
meu verso como deixa o capitão sua espada;
famosa pela mão viril que ao alto a erguera,
não pelo douto ofício do forjador prezada.
Dialogo com o homem que sempre vai comigo
— quem fala a sós, espera falar a Deus um dia —
meu solilóquio é prática com este bom amigo
que ensinou-me o segredo de sua filantropia.
Enfim, nada vos devo; deveis-me o que hei escrito.
A meu trabalho acudo, com meu dinheiro pago
a roupa que me cobre e a mansão que habito,
o pão que me alimenta e o leito onde me apago.
E quando chegue o dia da última viagem,
e esteja de partida a nau sem retornar,
me encontrareis a bordo ligeiro de equipagem,
quase desnudo, nu como os filhos do mar

Antonio Machado
Tradução de Fernando Mendes Vianna


RETRATO



Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla,
y un huerto claro donde madura el limonero;
mi juventud, veinte años en tierra de Castilla;
mi historia, algunos casos que recordar no quiero.
Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido
— ya conocéis mi torpe aliño indumentario —,
mas recibí la flecha que me asignó Cupido,
y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.
Hay en mis venas gotas de sangre jacobina,
pero mi verso brota de manantial sereno;
y más que un hombre al uso que sabe su doctrina,
soy, en el buen sentido de la palabra, bueno.
Adoro la hermosura, y en la moderna estética
corté las viejas rosas del huerto de Ronsard;
mas no amo los afeites de la actual cosmética,
ni soy un ave de esas del nuevo gay-trinar.
Desderio las romanzas de los tenores huecos
y el coro de los grillos que cantan a la luna.
A distinguir me paro las voces de los ecos,
y escucho solamente, entre las voces, una.
¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera
mi verso, como deja el capitán su espada;
famosa por la mano viril que la blandiera,
no por el docto oficio del forjador preciada.
Converso con el hombre que siempre va conmigo
— quien habla solo espera hablar a Dios un día —;
mi soliloquio es plática con este buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.
Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.
A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
el traje que me cubre y la mansión que habito,
el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.
Y cuando llegue el día del último viaje,
y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar.


Antonio Machado

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A gazela

A gazela

Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,
para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte

a prumo, prestes, pára: assim, na fonte,
a banhista que um frêmito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.



Die Gazelle

Verzauberte: wie kann der Einklang zweier 
erwählter Worte je den Reim erreichen, 
der in dir kommt und geht, wie auf ein Zeichen. 
Aus deiner Stirne steigen Laub und Leier, 

und alles Deine geht schon im Vergleich 
durch Liebeslieder, deren Worte, weich 
wie Rosenblätter, dem, der nicht mehr liest, 
sich auf die Augen legen, die er schließt: 

um dich zu sehen: hingetragen, als 
wäre mit Sprüngen jeder Lauf geladen 
und schösse nur nicht ab, solang der Hals 

das Haupt ins Horchen hält: wie wenn beim Baden 
im Wald die Badende sich unterbricht: 
den Waldsee im gewendeten Gesicht. 



RILKE, Ranier Maria von. "Neue Gedichte I". In: CAMPOS, Augusto de (org. e trad.). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2007.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

"vivamus, mea lesbia, atque amemus"

vivamus, mea lesbia, atque amemus

Vivamos minha Lésbia, e amemos,
e as graves vozes velhas
- todas -
valham para nós menos que um vintém.
Os sóis podem morrer e renascer:
quando se apaga nosso fogo breve
dormimos uma noite infinita.
Dá-me pois mil beijos, e mais cem,
e mil, e cem, e mil, e mil e cem.
Quando somarmos muitas vezes mil
misturaremos tudo até perder a conta:
que a inveja não ponha o olho de agouro
no assombro de uma tal soma de beijos.



vivamus, mea lesbia, atque amemus

vivamus, mea lesbia, atque amemus, 
rumoresque senum severiorum 
omnes unius aestimemus assis. 
soles occidere et redire possunt: 
nobis, cum semel occidit brevis lux, 
nox est perpetua una dormienda. 
da mi basia mille, deinde centum, 
dein mille altera, dein secunda centum, 
deinde usque altera mille, deinde centum. 
dein, cum milia multa fecerimus, 
conturbabimus illa, ne sciamus, 
aut nequis malus invidere possit, 
cum tantum sciat esse basiorum. 


CATULLUS, Gaius Valerius. Select poems of Catullus. Edited by Francis P. Simpson. London: Macmillan, 1948.

CAMPOS, Haroldo de. "catuliana". In: Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Retrato Cubista (para cdcl)

Não há remédio
para cólicas e abismos
afetivos:
você ali sentindo as
dores dentro e

o amor através -

além das
expectativas
mofadas ao
sol, eternas
cativas dos
malefícios fiscais
sem retorno -

do sorriso
infantil às margens
da Lagoa
após uma palavra
afiada
da última vez etc. -

então
o telefone
público
explode em cacos
oito meses
de idas sem volta -

esperas
tão banais
quanto um arco
e flecha
de brinquedo
um beijo sem retorno
ou dez mil pixels
de Picasso

(não esqueceremos
nada disso
querida,
e no entanto queremos
dormir em paz.)

Leonardo Martinelli

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Domínios

Não ao amor
Não há o amor
nessa quase poesia
Talvez o encanto
encontro diabólico
entre olhos e alma
domínios...

Há algo em você
que não conheço
mas não sai de mim

Surge a indagação do filósofo:
"Será o amor uma luta?"

Vânia de Magalhães

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Brinde / Salut

Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde

Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
um branco afã de nossa vela.

Mallarmé
Tradução de Augusto de Campos

Rien, cette écume, vierge vers
À ne désigner que la coupe;
Telle loin se noie une troupe
De sirènes mainte à l'envers.

Nous naviguons, ô mes divers
Amis, moi déjà sur la poupe
Vous l'avant fastueux qui coupe
Le flot de foudres et d'hivers;

Une ivresse belle m'engage
Sans craindre même son tangage
De porter debout ce salut

Solitude, récif, étoile
À n'importe ce qui valut
Le blanc souci de notre toile.

Mallarmé

quarta-feira, 12 de junho de 2013

De tudo, ao meu amor serei atento 
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto 
Que mesmo em face do maior encanto 
Dele se encante mais meu pensamento 

Quero vivê-lo em cada vão momento 

E em seu louvor hei de espalhar meu canto 
E rir meu riso e derramar meu pranto 
Ao seu pesar ou seu contentamento 

E assim quando mais tarde me procure 

Quem sabe a morte, angústia de quem vive 
Quem sabe a solidão, fim de quem ama 

Eu possa lhe dizer do amor (que tive): 

Que não seja imortal, posto que é chama 
Mas que seja infinito enquanto dure

Vinicius de Moraes

sábado, 8 de junho de 2013

Se é doce

Se é doce no recente, ameno Estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias e os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;

Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando e seus ardores
Dentre os aromas de pomar sombrio;

Se é doce mares, céus ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados,

Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados.
Morte, morte de amor, melhor que a vida.

Bocage




sexta-feira, 7 de junho de 2013

Poemeto Erótico

Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado...

Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...
Volúpia de água e da chama...

A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manuel Bandeira

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Viúva na praia

Ivo viu a uva; eu vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na praia me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva.

0 enterro passara sob a minha janela; o morto eu o conhecera vagamente; no café da esquina. a gente se cumprimentava às vezes, murmurando "bom dia"; era um homem forte, de cara vermelha; as poucas vezes que o encontrei com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu também. Lembro-me de que uma vez perguntei os horas ao garçom, e foi aquele homem que respondeu; agradeci; este foi nosso maior diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um "Citroen", com a mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à praia com o menino, em frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava de longe; sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista; eu não a olhava de frente.

A morte do homem foi comentada no café; eu soube, assim, que ele passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença.

E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia? Nossa praia não é nenhuma festa; tem pouca gente; além disso, vamos supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto; já era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente; não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos.

Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias depois minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei, vendo a viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção; é discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos; talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros; os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco; a linha do queixo muito nítida.

Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n'água. Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de vista, do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que distraído.

Mas eu não morri; e eu sou o outro homem. E a idéia de que o defunto ficaria ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo de sua viúva, essa idéia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não possa lhe imputar essa idéia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele.

Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já bem crescido. 0 esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas; é bela assim, marchando com a sua carga querida.

Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é ela que vai dar um mergulho rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se finar; vendo-o decair de sua glória de homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino, às vezes até ridículo, às vezes até nojento...

Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo. 0 sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

(Rio, setembro, 1958)

Rubem Braga


quarta-feira, 5 de junho de 2013

A cópula

Depois de lhe beijar meticulosamente
o cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce,
o moço exibe à moça a bagagem que trouxe:
culhões e membro, um membro enorme e tungescente.

Ela toma-o na boca e morde-o. Incontinente,
Não pode ele conter-se, e, de um jacto, esporrou-se.
Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alteou-se
E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente

Que vai morrer: - "Eu morro! Ai, não queres que eu morra?!"
Grita para o rapaz que aceso como um diabo,
arde em cio e tesão na amorosa gangorra

E titilando-a nos mamilos e no rabo
(que depois irá ter sua ração de porra),
lhe enfia cona a dentro o mangalho até o cabo.

Manuel Bandeira

terça-feira, 4 de junho de 2013

A paixão medida

Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina.Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 2 de junho de 2013

Nel mezzo del camin...

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac

sábado, 1 de junho de 2013

Última flor do Lácio, inculta e bela,

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Velhas árvores


Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
... E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

Olavo Bilac, in "Poesias"

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Música

mamilos ilhas
do mar elástico
flores
na pele do peito
negro loiro
perfume volume
clítoris
da face do êxtase
vento oscilando
cúpula no mastro
glande
rubra de neve
na pele do deserto
areia movediça
cetim
de dedos cactus
fundo e claro
obscuro fluxo
canto
do olho aberto
figura esguia
peixe na água
lava
por fenda fina
a saliva sabe
do sol o toque
beijo
eixo na boca
vôo no ritmo
das asas duplas
cópula
única é a ave
volume ocupando
espaço da mão
flecha
redonda logo
olhos abertos
na cor da noite
voláteis
cristais de luz
na onda anda
um outro lugar
vulva
volume vago
o ambíguo dizer
pedra de toque
pénis
no calor dos olhos
carícia outra
leve fluir
língua
toque ácido
total orgasmo
nulo de nada
luz
sobre a iluminação

E.M. de Melo e Castro

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27



I


Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.


Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.



II


Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado



III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinicius de Moraes

terça-feira, 28 de maio de 2013

Soneto II

SONETO II

Já imóvel na luz, porém dançante
teu movimento na quietude que cria
na cimeira da vertigem se alia,
detendo, não ao voo, sim ao instante.

Chama que não se verte, já diamante,
sedento resplendor que não esfria
a si mesmo se queima noite e dia,
de cinzas e fogo equidistante.

Espada, língua, incêndio cinzelado,
minha sede nem suspende nem a mata,
gelada luz, luzeiro ensimesmado,

relâmpago sedento que desata
as geométricas vozes, ternura
com que fixo tua dança em escultura.

Octavio Paz
         Tradução de Antonio Miranda




SONETO II

Inmóvil en la luz, pero danzante,
tu movimento a la quietude que cria
em la cima del vértigo se alía,
deteniendo, no al vuelo, si al instante.

Llama que no se vierte, ya diamante,
sediento resplandor que no se enfría
y a sí mismo se quema noche y día,
de cenizas y fuego equidistante.

Espada, lengua, incêndio cinzelado,
que ni mi sed suspende ni la mata,
helada luz, lucero ensimesmado,

relâmpago sediento que desata
mis geométricas vocês, la ternura
com que fijo tu danza em escultura.

Octavio Paz
                 (De Orilla del Mundo, 1942)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Espiral

 ESPIRAL

Como o cravo no seu talo,
como o cravo, eis o foguete,
que é um cravo de disparo.

É foguete o torvelinho:
sobe ao céu e se despluma,
canto de ave no pinho.

Como o cravo e como o vento
o caracol é foguete:
empedrado movimento.

E a espiral em cada coisa
seu vibrar difunde em giros:
um mover que não repousa.

O caracol foi corola,
eco de eco, luz, vento,
onda que se encaracola.


Octavio Paz

Tradução de Haroldo de Campos



ESPIRAL

Como el clavel sobre su vara,
como el clavel, es el cohete:
es un clavel que se dispara.

Como el cohete el torbellino:
Sube hasta el cielo y se desgrana,
canto de pájaro en un pino.

Como el clavel y como el viento
el caracol es un cohete:
petrificado movimiento.

Y la espiral en cada cosa
su vibración difunde en giros:
el movimiento no reposa.

El caracol ayer fue ola,
mañana luz y viento, son,
eco del eco, caracola.

Octavio Paz