segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

ELEGIA DE PÃ NA ETAR

Para o Osvaldo Manuel Silvestre

Falha o sopro na flauta de cana ...
e rebate os cascos fendidos
nos remansos da lagoa anaeróbica,
cujos lodos bacterianos, degradados,
o ar incensam de gás sulfídrico,
pondo em fuga rãs saltadoras,
com estranhas mutações
e pentâmetras pernas.

Dança depois na grade decantadora,
cadafalso que se abre sob a cascata
de águas residuais
e as deixa a estrebuchar no leito espúmeo
de óleos, adubos, solventes
e humanais detritos
por algas e micróbios digeridos com fartura.

São os seus últimos dias.
Podeis vê-lo sem rumo e sem tino
a eludir o sol com o prémio da cabeça.

À noite adormece na barraca mais esconsa,
erguida com despojos de mil vidas
sentenciadas à felicidade
e de carreiras cevadas no triunfo e na dominação.

São os seus últimos dias:
podeis vê-lo recostado no tanque de sedimentação
a sonhar com o espondeu das águas,
o troqueu dos seixos, o dáctilo
das canas, o anapesto das cigarras.

Dá medo vê-lo assim tão alheado, tão distraído,
tão embestado na sua insofrível utopia.
Não tarda faz-se roubar e espancar por algum agarrado,
fica para aí caído numa moita. Um dia destes matam-no:
surpreendido entre as sebes a colher as últimas amoras,
um só tiro bastará, ou nem tanto – uma paulada,
como nos coelhos se usava.

Um dia destes encontram-lhe o cadáver dançarino
metido no poço de algum prédio inacabado,
morto e remorto,
para que não volte cá o seu fantasma.

Porque os homens não se contentam com matar,
querem matar ainda os fantasmas do que matam.

Rui Lage, Estrada Nacional, INCM

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Moral da história

Deixamos passar o outono, o inverno,
a primavera, o verão,
e fazemos de conta que lhes sobrevivemos
como se tudo não passasse
de inofensiva e reversível
sucessão.

Passeamos de mãos dadas,
temos filhos e casamos,
pedimos a reforma,
partilhamos o gelado na praia
junto à rebentação,
apertamos o casaco na gola
quando as folhas se deitam,
pisamos papoilas em caminhos
de aldeias abandonadas,
olhamos a água no tanque
quando levamos o cão à rua
de madrugada,
e dizemos: é isto a vida, é isto
o real
(e assim nos enganamos)
como meninos
livres para brincar junto do poço
enquanto a mãe não está a olhar
ou fala ao telefone,
ou prepara o almoço.

Rui Lage


Poemas extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.