quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Comendo poesia

Comendo poesia

Tinta escorre pelos cantos da minha boca.
Não há felicidade como a minha.
Andei comendo poesia.

A bibliotecária não acredita no que vê.
Com olhos tristes
ela caminha com as mãos sobre o vestido.

Os poemas se foram.
A luz é parca.
Os cães estão na escada do porão, subindo.

Seus olhos giram,
suas pernas loiras queimam como um pincel.
A pobre bibliotecária começa espernear e chorar.

Ela não entende.
Quando eu me ajoelho e lambo sua mão,
ela grita.

Eu sou um novo homem.
Eu rosno para ela e lato.
Eu faço a festa na escuridão dos livros.

Mark Strand
Tradução de  Wagner Miranda



Eating Poetry

Ink runs from the corners of my mouth.
There is no happiness like mine.
I have been eating poetry.

The librarian does not believe what she sees.
Her eyes are sad
and she walks with her hands in her dress.

The poems are gone.
The light is dim.
The dogs are on the basement stairs and coming up.

Their eyeballs roll,
their blond legs burn like brush.
The poor librarian begins to stamp her feet and weep.

She does not understand.
When I get on my knees and lick her hand,
she screams.

I am a new man,
I snarl at her and bark,
I romp with joy in the bookish dark.

Mark Strand

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Ismália


            Quando Ismália enlouqueceu,
            Pôs-se na torre a sonhar...
            Viu uma lua no céu,
            Viu outra lua no mar.

            No sonho em que se perdeu,
            Banhou-se toda em luar...
            Queria subir ao céu,
            Queria descer ao mar...

            E, no desvario seu,
            Na torre pôs-se a cantar...
            Estava perto do céu,
            Estava longe do mar...

            E como um anjo pendeu
            As asas para voar...
            Queria a lua do céu,
            Queria a lua do mar...

            As asas que Deus lhe deu
            Ruflaram de par em par...
            Sua alma subiu ao céu,
            Seu corpo desceu ao mar...


Alphonsus de Guimaraens

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Auto-retrato aos vinte anos

Eu fui embora, tomei meu caminho e nunca soube
até onde poderia me levar. Fui cheio de medo,
meu estômago revirou e a cabeça zumbia:
acho que era o ar frio dos mortos.
Não sei. Me deixei ir, pensei que era uma pena
terminar tão de repente, mas por outro lado
escutei aquele chamado misterioso e convincente.
Ou você o escuta ou não o escuta, e eu o escutei
e quase caí no choro: um som terrível,
nascido no ar e no mar.
Um escudo e uma espada. Então,
apesar do medo, me deixei ir, encostei minha face
na face da morte.
E era impossível fechar meus olhos e não ver
aquele espetáculo estranho, lento e estranho,
ainda que embutido numa realidade rapidíssima:
milhares de garotos como eu, imberbes
ou barbados, mas todos latino-americanos,
unindo suas faces com as da morte.

Por Roberto Bolaño 
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes


Autorretrato a los veinte años

Me dejé ir, lo tomé en marcha y no supe nunca
hacia dónde hubiera podido llevarme. Iba lleno de miedo,
se me aflojó el estómago y me zumbaba la cabeza:
yo creo que era el aire frío de los muertos.
No sé. Me dejé ir, pensé que era una pena
acabar tan pronto, pero por otra parte
escuché aquella llamada misteriosa y convincente.
O la escuchas o no la escuchas, y yo la escuché
y casi me eché a llorar: un sonido terrible,
nacido en el aire y en el mar.
Un escudo y una espada. Entonces,
pese al miedo, me dejé ir, puse mi mejilla
junto a la mejilla de la muerte.
Y me fue imposible cerrar los ojos y no ver
aquel espectáculo extraño, lento y extraño,
aunque empotrado en una realidad velocísima:
miles de muchachos como yo, lampiños
o barbudos, pero latinoamericanos todos,
juntando sus mejillas con la muerte.

Roberto Bolaño

terça-feira, 28 de outubro de 2014

AOS PREDADORES DA UTOPIA

dentro de mim
morreram muitos tigres

os que ficaram
no entanto
são livres

Lau Siqueira

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Vegetal e só

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Eugénio de Andrade

domingo, 7 de setembro de 2014

Arte poética

A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas dar minha voz à veemência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente
Como quem devora o coração do leão

Olha fita escuta
Atenta para a caçada no quarto penumbroso



ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "O Búzio de Cós e outros poemas". Edição de Carlos Mendes de Sousa. In:_____. Obra poética. Alfragide: Caminho, 2011.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Não entro nessa dança, não incenso

Não entro nessa dança, não incenso
Os ídolos de ouro e pés de barro;
Tampouco aperto a mão desse masmarro
Que me difama e distribui dissenso.

Não galanteio a linda rapariga
Que ostenta sem pudor suas vergonhas;
Nem acompanho as multidões medonhas
Que adoram seus heróis de meia-figa.

Eu sei: carvalhos têm que desabar,
Enquanto o junco se abaixando espera
Passar o vento forte da intempérie.

Mas do que pode um junco se orgulhar?
Tirar poeira de capacho ao sol,
Curvar-se para a linha de um anzol.

Ich tanz nicht mit, ich räuchre nicht den Klötzen,
Die außen goldig sind, inwendig Sand;
Ich schlag nicht ein, reicht mir ein Bub die Hand,
Der heimlich will den Namen mir zerfetzen.

Ich beug mich nicht vor jenen hübschen Metzen,
Die schamlos prunken mit der eignen Schand;
Ich zieh nicht mit, wenn sich der Pöbel spannt
Vor Siegeswagen seiner eiteln Götzen.

Ich weiß es wohl, die Eiche muß erliegen,
Derweil das Rohr am Bach, durch schwankes Biegen,
In Wind und Wetter stehn bleibt, nach wie vor.

Doch sprich, wie weit bringt’s wohl am End’ solch Rohr?
Welch Glück! als ein Spazierstock dient’s dem Stutzer,
Als Kleiderklopfer dient’s dem Stiefelputzer.


HEINE, Heinrich. "Sonetos-afresco". In:_____. heine hein?
poeta dos contrários. Introdução e traduções de André Vallias.
São Paulo: Perspectiva, 2011.

domingo, 10 de agosto de 2014

Numa incerta noite

Calculo as ruas que atravesso
Vendo a copa das árvores
Guiado pelas folhagens
Profusamente imerso
Na vertigem inversa
Da hemorragia verde
Do ciciópico olho vegetal
Que me contempla

Sebastião Uchoa Leite

sábado, 9 de agosto de 2014

Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso 
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto 
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto 
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos 
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz

Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui 
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui
.
[Ruy Belo - Toda a Terra Todos os Poemas, Assírio & Alvim]

domingo, 27 de abril de 2014

soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura

quarta-feira, 2 de abril de 2014

"Почти элегия" / "Quase uma elegia"

Quase uma elegia

Também eu aguardei na colunata
da Bolsa, outrora, o fim da chuva fria.
Julgava-a dom de Deus. E era sensata
minha suposição. Pois algum dia
também eu fui feliz. Fui prisioneiro
dos anjos. Combatia monstro horrendo.
Feito Jacó, fitava sorrateiro
uma beldade -rápido- descendo
a escada principal.
                               Aonde tudo
se foi. Sumiu. Olho janela afora:
o "aonde" acima, eu o escrevi, contudo,
sem ponto de interrogação. Agora
é setembro. Um trovão distante invade
meu ouvido. Eis um horto. Pêras pensas,
cheias de seiva nas ramagens densas,
parecem signos de virilidade.
E o ouvido admite, como gente avara
parentes na cozinha, um som assíduo
de chuva que, na mente, sem chegar a
música ainda, é mais do que ruído.

Joseph Brodsky: : tradução por Boris Schnaiderman e Nelson Ascher



Почти элегия

В былые дни и я пережидал

холодный дождь под колоннадой Биржи.
И полагал, что это - божий дар.
И, может быть, не ошибался. Был же
и я когда-то счастлив. Жил в плену
у ангелов. Ходил на вурдалаков.
Сбегавшую по лестнице одну
красавицу в парадном, как Иаков,
подстерегал.
                       Куда-то навсегда
ушло все это. Спряталось. Однако,
смотрю в окно и, написав "куда",
не ставлю вопросительного знака.
Теперь сентябрь. Передо мною - сад.
Далекий гром закладывает уши.
В густой листве налившиеся груши
как мужеские признаки висят.
И только ливень в дремлющий мой ум,
как в кухню дальних родственников - скаред,
мой слух об эту пору пропускает:
не музыку еще, уже не шум.

  
BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Traduções de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Introdução e textos complementares de Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1996.

quarta-feira, 26 de março de 2014

O tempo vive

O tempo vive, quando os homens, nele,
se esquecem de si mesmos,
ficando, embora, a contemplar o estreme
reduto de estar sendo.
O tempo vive a refrescar a sede
dos animais e do vento,
quando a estrutura estremece
a dura escuridão que, desde dentro,
irrompe. E fica com o uivo agreste
espantando o seu estrondo de silêncio.

Fernando Echevarría, in "Sobre os Mortos"

domingo, 23 de março de 2014

É por Ti que Vivo

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto'

terça-feira, 18 de março de 2014

Sobre Roma

Sobre Roma

Recém-chegado que, buscando Roma em Roma,
não encontras, em Roma, Roma alguma,
olha, ao redor, muro e mais muro, pedras rotas,
ruínas, que assustam, de um teatro imenso:
é Roma isto que vês – cidade tão soberba,
que ainda exala ameaças seu cadáver.
Vencido o mundo, quis vencer-se e, se vencendo,
para que nada mais seguisse invicto,
jaz, na vencida Roma, Roma, a vencedora,
pois Roma é quem venceu e foi vencida.
Só resta, indício do que já foi Roma, o Tibre:
corrente rápida que corre ao mar.
Assim age a Fortuna: o que há de firme passa
e o que sempre se move permanece.

JANUS VITALIS


De Roma

Qui Romam in media quaeris nouus adueña Roma,
Et Romae in Roma nil reperis media,
Aspice murorum moles, praeruptaque saxa,
Obrutaque horrenti uasta theatra situ:
Haec sunt Roma: uiden uelut ipsa cadauera tantae
Vrbis adhuc spirent imperiosa minas?
Vicit ut haec mundum, nisa est se uincere: uicit,
A se non uictum ne quid in orbe foret.
Nunc uicta in Roma uictrix Roma illa sepulta est?
At que eadem uictrix, uictaque Roma fuit.
Albula Romani restat nunc nominis index,
Qui quoque nunc rapidis fertur in aequor aquis.
Disce hinc quid possit fortuna: immota labascunt,
Et quae perpetuo sunt agitata manent.



JANUS VITALIS. "De Roma". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Às vezes, em Tardes de Inverno

Às vezes, em Tardes de Inverno,
Uma Luz Enviesada —
Como o Som das Catedrais
Opressora, Pesada —

Nos fere com Dor Divina —
Porém cicatriz não fica
Senão no fundo de nós,
Onde o Sentido habita —

É o Selo do Desespero —
A ele — Nada lhe Falta —
Angústia imperial
Que nos desce do alto

Quando vem, a Terra atenta —
Sombras — param no ar —
Quando vai, é como a Morte
Ao Longe, a se afastar —

(Emily Dickinson, tradução de Paulo Henriques Britto)

       

There’s a certain Slant of light,
Winter Afternoons —
That oppresses, like the Heft
Of Cathedral Tunes —

Heavenly Hurt, it gives us —
We can find no scar,
But internal difference,
Where the Meanings, are —

None may teach it — Any —
‘Tis the Seal Despair —
An imperial affliction
Sent us of the Air —

When it comes, the Landscape listens —
Shadows — hold their breath —
When it goes, ‘tis like the Distance
On the look of Death —


Emily Dickinson

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Quanto, quanto me queres? — perguntaste

Quanto, quanto me queres? — perguntaste
Numa voz de lamento diluída;
E quando nos meus olhos demoraste
A luz dos teus senti a luz da vida.

Nas tuas mãos as minhas apertaste;
Lá fora da luz do Sol já combalida
Era um sorriso aberto num contraste
Com a sombra da posse proibida...

Beijámo-nos, então, a latejar
No infinito e pálido vaivém
Dos corpos que se entregam sem pensar...

Não perguntes, não sei — não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.


BOTTO, António. As canções de António Botto. Lisboa: Presença, 1999.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A Educação pela Pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Hora absurda

Hora absurda
                                                                      04/07/1913

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixas dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os casos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há cousas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque -
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - "Vitória"!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!"

Fernando Pessoa

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

ODE LOUCA

Todos os homens têm o seu rio.
Lamentam-no sentados no interior das casas
de interior e como o poeta que escreve a lápis
apagam a memória com a sua água.
Os rios abandonam os homens que envelhecem
longe da infância, e eles choram
o reflexo absurdo na distância.
Por vezes, enlouquecem os rios, os homens,
os poetas nas palavras repetidas
que buscam uma ode que lhes diga
a textura. Todos procuram o mesmo:
um lugar de água mais limpa
ou um espelho que não lhes negue
a hipótese do reflexo.
O rio sofre mais do que o homem,
o poeta,
porque dele se espera que nos devolva
a imagem de tudo, menos de si próprio.
Todos os rios têm o seu narciso,
mas poucos, muito poucos,
o simples reflexo das suas águas.

Filipa Leal

sábado, 8 de fevereiro de 2014

TAVIRA I

Não brincam no jardim
as infâncias perdidas

O lago já secou
nas grades do coreto
enforcaram-se os músicos

E a palmeira
sem tâmaras
marca só o lugar
do tempo que passou.

Yvette K Centeno

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

Paulo Leminski

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Oração natural

Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
Fique atento.
A atenção
é sua forma natural
de oração.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

IV. Morte por água

IV. Morte por água

Flebas, o Fenício, morto há quinze dias,
Esqueceu o grito das gaivotas e o marulho das vagas
E os lucros e os prejuízos.
                                           Uma corrente submarina
Roeu-lhe os ossos em surdina. Enquanto subia e descia
Ele evocava as cenas de sua maturidade e juventude
Até que ao torvelinho sucumbiu.
                                                      Gentio ou judeu
Ó tu que o leme giras e avistas onde o vento se origina,
Considera a Flebas, que foi um dia alto e belo como tu


ELIOT, T.S. "A terra desolada" In:_____. Poesia. Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.



IV. Death By Water

Phlebas the Phoenician, a fortnight dead,
Forgot the cry of gulls, and the deep sea swell
And the profit and loss.
                                       A current under sea
Picked his bones in whispers. As he rose and fell
He passed the stages of his age and youth
Entering the whirlpool.
                                      Gentile or Jew
O you who turn the wheel and look to windward,
Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you.


ELIOT, T.S