quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Manhã de Domingo

Manhã de Domingo



1.



Complacência de penhoar, café

E laranjas ao sol das onze horas,

Verde indolência de uma cacatua

No tapete – isso ajuda a dissipar

O santo silêncio do sacrifício.

Mas ela sonha, e sente aproximar-se,

Escura e lenta, a catástrofe antiga,

Como o descer da noite sobre as águas.

O odor das frutas, o brilho de asas verdes

Virão talvez da procissão dos mortos,

Que atravessa as águas, silenciosa.

Aquietou-se para dar passagem

A seus pés sonhadores sobre os mares

A Terra Santa de sangue e sepulcro.







2.



Por que legar aos mortos o que é seu?

O que é o divino, se se manifesta

Somente em sonhos, sombras silenciosas?

Por que não encontrar prazer no sol,

No odor das frutas, brilho de asas verdes,

Em qualquer outro bálsamo terreno,

Tão caro quanto o próprio paraíso?

É nela que o divino há de viver:

Paixões chuvosas, cismas de nevascas,

Negras solidões, gozos incontidos

Quando a floresta se abre em flor; lufadas

De emoção em noites frescas de outono;

Toda dor e delícia; gordos ramos

De verão, galhos desnudos de inverno.

Estes, os ritmos próprios de sua alma.





3.



Nas nuvens nasceu Jove, o não-humano,

Que mãe não aleitou, e em relva fresca

Com passos divinais jamais pisou.

Caminhou entre nós, um rei absorto,

Magnífico, portento entre os humildes,

Até que sangue humano e virginal

Mesclou-se ao céu, anseio tão intenso

Que o viram os mais humildes, numa estrela.

Quem sabe nosso sangue ainda virá

A ser do paraíso? Será a terra

O único paraíso possível?

O céu ainda será nosso aliado,

Na dor e no cansaço, quase igual

Em glória ao próprio amor imorredouro,

Não mais um muro indiferente e azul.




4.



Diz ela: “Quando os pássaros questionam

Com cantos matinais a realidade

Dos campos enevoados, sou feliz;

Mas quando vão-se embora, e vai-se junto

Toda a paisagem, onde o paraíso?”.

Não há nenhuma negra profecia,

Não há quimera sepulcral tampouco,

Nem ilha melodiosa, habitada

Por espíritos, nem doce eldorado

No sul, nem palmeira em longínqua névoa

De outeiro no céu, que perdure mais

Do que o verdor da primavera, mais

Que a lembrança de uma manhã com pássaros,

Ou um desejo de tarde de verão

Consumada em asas de andorinhas.




5.



Diz ela: “Ainda assim, sei que preciso

De alguma alegria imperecível”.

A morte é a mãe do belo, e só a morte

Satisfaz nossos sonhos e desejos.

Ainda que ela espalhe as folhas secas

Do aniquilamento a nossa frente

Pelo caminho da dor, pelos muitos

Caminhos onde exultou a vitória,

Ou onde o amor sussurrou sua ternura,

Faz o salgueiro estremecer ao sol,

Para moças que antes sonhavam na relva

E agora se levantam. Faz rapazes

Juntarem maçãs e ameixas novas

Num prato esquecido. As moças provam,

E apaixonadas andam sobre folhas.




6.



Não haverá morte no paraíso?

Não cairá a fruta madura? Os galhos

Hão de ficar para sempre carregados

Naquele céu perfeito e imutável,

E ao mesmo tempo semelhante ao mundo

Mortal, com rios que buscam sempre mares

Que nunca hão de tocar com lábios mudos?

De que servem as maças nessas margens?

Por que adoçar com ameixas aquelas praias?

Que triste, lá brilharem nossas cores,

Tecer-se a seda de nossas manhãs,

Soarem nossos violões insípidos!

A morte é a mãe de todo o belo, mística,

E no seu seio cálido sonhamos

A mãe terrena, insone, a nossa espera.





7.



Homens ágeis e alegres, de mãos dadas,

Numa manhã de verão, em plena orgia,

Hão de cantar em devoção ao sol,

Não como deus, mas como um deus seria,

Nu entre eles, uma fonte bárbara.

E seu canto há de ser paradisíaco,

Saído do seu sangue para o céu;

E em seu canto entrará, em cada voz,

O lago que deleita o seu senhor,

As árvores seráficas, e os montes

Por muito tempo a repetir sua música.

Conhecerão a sagrada irmandade

De homens mortais e estivais manhãs.

E de onde vieram, e para onde irão,

O orvalho em seu pés indicará.





8.



Ela ouve, nas águas silenciosas,

Uma voz gritar: “O Santo Sepulcro

Não é alpendre onde repousem espíritos,

É o túmulo onde jazeu Jesus”.

Vivemos nesse velho caos de sol,

Ou velha servidão de noite e dia,

Ou solidão de ilha, livre e solta,

De águas silenciosas e implacáveis.

Cervos andam pelos montes; codornas

Assobiam, espontâneas; e nas matas

Amoras silvestres amadurecem.

E, no isolamento do azul,

Ao entardecer, pombas revoam a esmo,

Fazendo ondulações ambíguas, vagas,

Em direção à sombra, com suas asas.



.

Sunday Morning


I



Complacencies of the peignoir, and late

Coffee and oranges in a sunny chair,

And the green freedom of a cockatoo

Upon a rug mingle to dissipate

The holy hush of ancient sacrifice.

She dreams a little, and she feels the dark

Encroachment of that old catastrophe,

As a calm darkens among water-lights.

The pungent oranges and bright, green wings

Seem things in some procession of the dead,

Winding across wide water, without sound.

The day is like wide water, without sound,

Stilled for the passing of her dreaming feet

Over the seas, to silent Palestine,

Dominion of the blood and sepulchre.





II



Why should she give her bounty to the dead?

What is divinity if it can come

Only in silent shadows and in dreams?

Shall she not find in comforts of the sun,

In pungent fruit and bright, green wings, or else

In any balm or beauty of the earth,

Things to be cherished like the thought of heaven?

Divinity must live within herself:

Passions of rain, or moods in falling snow;

Grievings in loneliness, or unsubdued

Elations when the forest blooms; gusty

Emotions on wet roads on autumn nights;

All pleasures and all pains, remembering

The bough of summer and the winter branch.

These are the measures destined for her soul.





III



Jove in the clouds had his inhuman birth.

No mother suckled him, no sweet land gave

Large-mannered motions to his mythy mind.

He moved among us, as a muttering king,

Magnificent, would move among his hinds,

Until our blood, commingling, virginal,

With heaven, brought such requital to desire

The very hinds discerned it, in a star.

Shall our blood fail? Or shall it come to be

The blood of paradise? And shall the earth

Seem all of paradise that we shall know?

The sky will be much friendlier then than now,

A part of labor and a part of pain,

And next in glory to enduring love,

Not this dividing and indifferent blue.





IV



She says, “I am content when wakened birds,

Before they fly, test the reality

Of misty fields, by their sweet questionings;

But when the birds are gone, and their warm fields

Return no more, where, then, is paradise?”

There is not any haunt of prophesy,

Nor any old chimera of the grave,

Neither the golden underground, nor isle

Melodious, where spirits gat them home,

Nor visionary south, nor cloudy palm

Remote on heaven’s hill, that has endured

As April’s green endures; or will endure

Like her remembrance of awakened birds,

Or her desire for June and evening, tipped

By the consummation of the swallow’s wings.




V



She says, “But in contentment I still feel

The need of some imperishable bliss.”

Death is the mother of beauty; hence from her,

Alone, shall come fulfilment to our dreams

And our desires. Although she strews the leaves

Of sure obliteration on our paths,

The path sick sorrow took, the many paths

Where triumph rang its brassy phrase, or love

Whispered a little out of tenderness,

She makes the willow shiver in the sun

For maidens who were wont to sit and gaze

Upon the grass, relinquished to their feet.

She causes boys to pile new plums and pears

On disregarded plate. The maidens taste

And stray impassioned in the littering leaves.





VI



Is there no change of death in paradise?

Does ripe fruit never fall? Or do the boughs

Hang always heavy in that perfect sky,

Unchanging, yet so like our perishing earth,

With rivers like our own that seek for seas

They never find, the same receding shores

That never touch with inarticulate pang?

Why set the pear upon those river banks

Or spice the shores with odors of the plum?

Alas, that they should wear our colors there,

The silken weavings of our afternoons,

And pick the strings of our insipid lutes!

Death is the mother of beauty, mystical,

Within whose burning bosom we devise

Our earthly mothers waiting, sleeplessly.





VII



Supple and turbulent, a ring of men

Shall chant in orgy on a summer morn

Their boisterous devotion to the sun,

Not as a god, but as a god might be,

Naked among them, like a savage source.

Their chant shall be a chant of paradise,

Out of their blood, returning to the sky;

And in their chant shall enter, voice by voice,

The windy lake wherein their lord delights,

The trees, like serafin, and echoing hills,

That choir among themselves long afterward.

They shall know well the heavenly fellowship

Of men that perish and of summer morn.

And whence they came and whither they shall go

The dew upon their feet shall manifest.




VIII



She hears, upon that water without sound,

A voice that cries, “The tomb in Palestine

Is not the porch of spirits lingering.

It is the grave of Jesus, where he lay.”

We live in an old chaos of the sun,

Or old dependency of day and night,

Or island solitude, unsponsored, free,

Of that wide water, inescapable.

Deer walk upon our mountains, and the quail

Whistle about us their spontaneous cries;

Sweet berries ripen in the wilderness;

And, in the isolation of the sky,

At evening, casual flocks of pigeons make

Ambiguous undulations as they sink,

Downward to darkness, on extended wings.



Wallace Stevens

Tradução de Paulo Henriques Britto

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