sexta-feira, 16 de junho de 2017

Presídio

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
   
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
 
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memóra o fugidio
 
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!,

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O POETA EM LISBOA

Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha — numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.


António José Forte

terça-feira, 18 de abril de 2017

SENSAÇÃO

Vejo cantar o pássaro
toco este canto com meus nervos
seu gosto de mel. Sua forma

gerando-se da ave
como aroma.
Vejo cantar o pássaro e através
da percepção mais densa
ouço abrir-se a distância
como rosa
em silêncio.

Orides Fontella

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

ELEGIA DE PÃ NA ETAR

Para o Osvaldo Manuel Silvestre

Falha o sopro na flauta de cana ...
e rebate os cascos fendidos
nos remansos da lagoa anaeróbica,
cujos lodos bacterianos, degradados,
o ar incensam de gás sulfídrico,
pondo em fuga rãs saltadoras,
com estranhas mutações
e pentâmetras pernas.

Dança depois na grade decantadora,
cadafalso que se abre sob a cascata
de águas residuais
e as deixa a estrebuchar no leito espúmeo
de óleos, adubos, solventes
e humanais detritos
por algas e micróbios digeridos com fartura.

São os seus últimos dias.
Podeis vê-lo sem rumo e sem tino
a eludir o sol com o prémio da cabeça.

À noite adormece na barraca mais esconsa,
erguida com despojos de mil vidas
sentenciadas à felicidade
e de carreiras cevadas no triunfo e na dominação.

São os seus últimos dias:
podeis vê-lo recostado no tanque de sedimentação
a sonhar com o espondeu das águas,
o troqueu dos seixos, o dáctilo
das canas, o anapesto das cigarras.

Dá medo vê-lo assim tão alheado, tão distraído,
tão embestado na sua insofrível utopia.
Não tarda faz-se roubar e espancar por algum agarrado,
fica para aí caído numa moita. Um dia destes matam-no:
surpreendido entre as sebes a colher as últimas amoras,
um só tiro bastará, ou nem tanto – uma paulada,
como nos coelhos se usava.

Um dia destes encontram-lhe o cadáver dançarino
metido no poço de algum prédio inacabado,
morto e remorto,
para que não volte cá o seu fantasma.

Porque os homens não se contentam com matar,
querem matar ainda os fantasmas do que matam.

Rui Lage, Estrada Nacional, INCM

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Moral da história

Deixamos passar o outono, o inverno,
a primavera, o verão,
e fazemos de conta que lhes sobrevivemos
como se tudo não passasse
de inofensiva e reversível
sucessão.

Passeamos de mãos dadas,
temos filhos e casamos,
pedimos a reforma,
partilhamos o gelado na praia
junto à rebentação,
apertamos o casaco na gola
quando as folhas se deitam,
pisamos papoilas em caminhos
de aldeias abandonadas,
olhamos a água no tanque
quando levamos o cão à rua
de madrugada,
e dizemos: é isto a vida, é isto
o real
(e assim nos enganamos)
como meninos
livres para brincar junto do poço
enquanto a mãe não está a olhar
ou fala ao telefone,
ou prepara o almoço.

Rui Lage


Poemas extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O Albatroz/L´albatros

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O Poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Charles Baudelaire
Tradução de Guillherme de Almeida

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.



Charles Baudelaire
Tradução de Ivan Junqueira


Às vezes, em recreio, os homens da equipagem
pegam um albatroz, enorme ave marinha
que segue, companheiro indolente de viagem,
o navio que sobre o atro abismo caminha.

Mal no convés se vê, todo desconjuntado,
logo esse rei do azul, em passos desiguais,
como dois remos, põe-se a arrastar a seu lado,
desajeitadamente, as asas colossais.

Esse alado viajor, como é grotesco andando!
Ei-lo horrível e inerme, ele que antes pairava!
Um chega-lhe o cachimbo ao bico, e outro, coxeando,
arremeda no andar o pobre que voava!

O poeta é o albatroz que nas nuvens se espraia,
que ri dos vendavais e afronta as setas, no ar;
exilado no solo, em meio ao riso e à vaia,
suas asas de gigante impedem-no de andar.

Charles Baudelaire
Tradução de Onestaldo de Pennafort

L'albatros]


Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.


A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.


Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!


Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


Charles Baudelaire