sexta-feira, 31 de maio de 2013

Velhas árvores


Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
... E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

Olavo Bilac, in "Poesias"

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Música

mamilos ilhas
do mar elástico
flores
na pele do peito
negro loiro
perfume volume
clítoris
da face do êxtase
vento oscilando
cúpula no mastro
glande
rubra de neve
na pele do deserto
areia movediça
cetim
de dedos cactus
fundo e claro
obscuro fluxo
canto
do olho aberto
figura esguia
peixe na água
lava
por fenda fina
a saliva sabe
do sol o toque
beijo
eixo na boca
vôo no ritmo
das asas duplas
cópula
única é a ave
volume ocupando
espaço da mão
flecha
redonda logo
olhos abertos
na cor da noite
voláteis
cristais de luz
na onda anda
um outro lugar
vulva
volume vago
o ambíguo dizer
pedra de toque
pénis
no calor dos olhos
carícia outra
leve fluir
língua
toque ácido
total orgasmo
nulo de nada
luz
sobre a iluminação

E.M. de Melo e Castro

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27



I


Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.


Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.



II


Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado



III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinicius de Moraes

terça-feira, 28 de maio de 2013

Soneto II

SONETO II

Já imóvel na luz, porém dançante
teu movimento na quietude que cria
na cimeira da vertigem se alia,
detendo, não ao voo, sim ao instante.

Chama que não se verte, já diamante,
sedento resplendor que não esfria
a si mesmo se queima noite e dia,
de cinzas e fogo equidistante.

Espada, língua, incêndio cinzelado,
minha sede nem suspende nem a mata,
gelada luz, luzeiro ensimesmado,

relâmpago sedento que desata
as geométricas vozes, ternura
com que fixo tua dança em escultura.

Octavio Paz
         Tradução de Antonio Miranda




SONETO II

Inmóvil en la luz, pero danzante,
tu movimento a la quietude que cria
em la cima del vértigo se alía,
deteniendo, no al vuelo, si al instante.

Llama que no se vierte, ya diamante,
sediento resplandor que no se enfría
y a sí mismo se quema noche y día,
de cenizas y fuego equidistante.

Espada, lengua, incêndio cinzelado,
que ni mi sed suspende ni la mata,
helada luz, lucero ensimesmado,

relâmpago sediento que desata
mis geométricas vocês, la ternura
com que fijo tu danza em escultura.

Octavio Paz
                 (De Orilla del Mundo, 1942)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Espiral

 ESPIRAL

Como o cravo no seu talo,
como o cravo, eis o foguete,
que é um cravo de disparo.

É foguete o torvelinho:
sobe ao céu e se despluma,
canto de ave no pinho.

Como o cravo e como o vento
o caracol é foguete:
empedrado movimento.

E a espiral em cada coisa
seu vibrar difunde em giros:
um mover que não repousa.

O caracol foi corola,
eco de eco, luz, vento,
onda que se encaracola.


Octavio Paz

Tradução de Haroldo de Campos



ESPIRAL

Como el clavel sobre su vara,
como el clavel, es el cohete:
es un clavel que se dispara.

Como el cohete el torbellino:
Sube hasta el cielo y se desgrana,
canto de pájaro en un pino.

Como el clavel y como el viento
el caracol es un cohete:
petrificado movimiento.

Y la espiral en cada cosa
su vibración difunde en giros:
el movimiento no reposa.

El caracol ayer fue ola,
mañana luz y viento, son,
eco del eco, caracola.

Octavio Paz





 





domingo, 26 de maio de 2013

Arcos

ARCOS

          A Silvina Ocampo

 Quem canta nas ourelas do papel?
 De bruços, inclinado sobre o rio
 de imagens, me vejo, lento e só,
 ao longe de mim mesmo: ó letras puras,
 constelação de signos, incisões
 na carne do tempo, ó escritura,
 risca na água!

          Vou entre verdores
 enlaçados, adentro transparências,
 entre ilhas avanço pelo rio,
 pelo rio feliz que se desliza
 e não transcorre, liso pensamento.
 Me afasto de mim mesmo, me detenho
 sem deter-me nessa margem, sigo
 rio abaixo, entre arcos de enlaçadas
 imagens, o rio pensativo.

 Sigo, me espero além, vou-me ao encontro,
 rio feliz que enlaça e desenlaça
 um momento de sol entre dois olmos,
 sobre a polida pedra se demora
 e se desprende de si mesmo e segue,
 rio abaixo, ao encontro de si mesmo.

 1947*

Octavio Paz

Tradução de Haroldo de Campos


ARCOS

         A Silvina Ocampo

¿Quién canta en las orillas del papel?
Inclinado, de pechos sobre el río
de imágenes, me veo, lento y solo,
de mí mismo alejarme: oh letras puras,
constelación de signos, incisiones
en la carne del tiempo, ¡oh escritura,
raya en el agua!

Voy, entre verdores
enlazados, voy entre transparencias,
entre islas avanzo por el río,
por el río feliz que se desliza
y no transcurre, liso pensamiento.
Me alejo de mí mismo, me detengo
sin detenerme en una orilla y sigo,
río abajo, entre arcos de enlazadas
imágenes, el río pensativo.

Sigo, me espero allá, voy a mi encuentro,
río feliz que enlaza y desenlaza
un momento de sol entre dos álamos,
en la pulida piedra se demora,
y se desprende de sí mismo y sigue,
río abajo, al encuentro de sí mismo.

1947

Octavio Paz


 

sábado, 25 de maio de 2013

Irmandade / Hermandad

IRMANDADE      
   
                 Homenagem a Cláudio Ptolomeu 
                  
  
Sou homem: duro pouco
e é desmedida a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Se também sou escritura
e eis que alguém neste mesmo
instante me soletra

 Octavio Paz

 Traduzido por Anderson Braga Horta



HERMANDAD 
 
                Homenaje a Claudio Ptolomeo



Soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.


 Octavio Paz

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Talvez uma manhã andando num ar de vidro


Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, com um terror de bêbedo.

Depois como numa tela, acamparão de um jato
árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde ~ e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

Eugenio Montale

(tradução: Geraldo H. Cavalcanti)

Forse un mattino andando in un’aria di vetro,
arida, rivolgendomi, vedrò compirsi il miracolo:
il nulla alle mie spalle, il vuoto dietro
di me, con un terrore di ubriaco.

Poi come s’uno schermo, s’accamperanno di gitto
Alberi case colli per l’inganno consueto.
Ma sarà troppo tardi; ed io me n’andrò zitto
Tra gli uomini che non si voltano, col mio segreto.

Eugenio Montale




quinta-feira, 23 de maio de 2013

Conto de carnaval:Batalha do Largo do Machado

     Como vos apertais, operários em construção civil, empregados em padarias, engraxates, jornaleiros, lavadeiras, cozinheiras, mulatas, pretas, caboclas, massa torpe e enorme, como vos apertais! E como a vossa marcação é dura e  triste! E sobre essa marcação dura a voz do samba se alastra rasgada:

“implorar

Só a Deus

Mesmo assim às vezes não sou atendido.

Eu amei...”

     É um profundo samba orfeônico para as amplas massas. As amplas massas imploram. As implorações não serão atendidas. As amplas massas amaram. As amplas massas hoje estão arrependidas. Mas amanhã outra vez as amplas massas amarão... As amplas massas agora batucam...Tudo avança batucando. O batuque é uniforme. Porém dentro dele há variações bruscas, sapateios duros, reviramentos tortos de corpos no apertado. Tudo contribui para a riqueza interior e intensa do batuque. Uma jovem mulata gorducha pintou-se bigodes com rolha queimada. Como as vozes se abrem espremidas e desiguais, rachadas, ritmadas, e rebentam, machos e fêmeas, muito para cima dos fios elétricos, perante os bondes paralisados, chorando, altas, desesperadas!

     Como essas estragadas vozes mulatas estalam e se arrastam no ar, se partem dentro das gargantas vermelhas. Os tambores surdos fazem o mundo tremer em uma cadência negra, absoluta. E no fundo a cuíca geme e ronca, nos puxões da mão negra. As negras estão absolutas com seus  corpos no batuque.Vede que vasto crioulo que tem um paletó que foi dólmã de soldado de Exército Nacional, tem gorro vermelho, calça de casemira arregaçada para cima do joelho, botinas sem meias, e um guarda-chuva preto rasgado, a boca berrando, o suor suando. Como são desgraçados e puros, e aquela negra de papelotes azuis canta como se fosse morrer. Os ranchos se chocam, berrando, se rebentam, se misturam, se formam em torno do surdo de barril, à base de cuícas, tamborins e pandeiros que batem e tremem eternamente.  Mas cada rancho é um íntegro, apenas os cordões se dissolvem e se formam sem cessar, e os blocos se bloqueiam.

     Meninas mulatas, e mulatinhas impúberes e púberes, e moças mulatas e mulatas maduras, e maduronas, e estragadas mulatas gordas. Morram as raças puras, morríssimam elas! Vede tais olhos ingênuos, tais bocas de largos beiços puros, tais corpos de bronze que é brasa, e testas, e braços, e pernas escuras, que mil escalas de mulatas! Vozes de mulatas, cantai,condenadas, implorai, implorai,só a Deus, nem a Deus, à noite escura arrependidas. Pudesse um grande sol se abrir no céu da noite, mas sem deturpar nem iluminar a noite, apenas se iluminando, e ardendo, como uma grande estrela do tamanho de três luas pegando fogo, cuspindo fogo no meio da noite! Pudesse esse astro terrível chispar, mulatas, sobre vossas cabeças que batucam no batuque.

     O apito comanda, e no meio do cordão vai um senhor magro, pobre louro, que leva no colo uma criança que berra, e ele canta também com uma voz que ninguém pode ouvir. As caboclas de cabelos pesados na testa suada com os corpos de seios grandes e duros, caboclos, marcando batuque. Os negros e mulatos inumeráveis, de macacão, de camisetas de seda de mulher, de capa de gabardine apenas, chapéus de palha, cartolas, caras com vermelhão. Batucam.

      Vai  se formar uma briga feia, mas o cordão berrando o samba corta a briga, o homem fantasiado de cavalo dá um coice no soldado, e o cordão empurra e ensurdece os briguentos, e tudo roda dentro do samba. Olha a clarineta quebrada, o cavaquinho oprimido, o violão que ficou surdo e mudo, e que acabou rebentando as cordas sem se fazer ouvir pelo povo e se mudando em caixa, o pau batendo no pau, o chocalho de lata, o tambor marcando, o apito comandando, os estandartes dançando o bodum pesado.

     Mas que coisa alegre de repente nesses sons pesados e negros, uma sanfoninha cujos sons tremem vivos, nas mãos de um moleque que possui um olho furado. Juro que iam dois aleijados de pernas de pau no meio do bloco, batendo no asfalto as pernas de pau.

Com que forças e suores e palavrões de barqueiros do Volga esses homens imundos esticam a corda defendendo o território sagrado e móvel do povo glorioso da escola de samba na Praia Funda! No espaço conquistado as mulatas vestidas de papel verde e amarelo, barretes brancos, berram prazenteiras e graves, segurando arcos triunfais individuais de flores vermelhas. Que massa de meninos no rabo do cortejo, meninos de oito anos, nove, dez, que jamais perdem a cadência, concebidos e gerados e crescidos no batuque, que batucarão até morrer!

     De repente o lugar em que estais enche demais, o suor negro e o soluço preto inundam o mundo, as caras passam na vossa cara, os braços dos que batucam espremem vossos braços, as gargantas que cantam exigem de vossa garganta o canto da igualdade, liberdade, fraternidade. De repente em redor do asfalto se esvazia e os sambas se afastam em torno, e vedes o chão molhado, e ficais tristes, tendes vontade de chorar de desespero.

     Mas outra vez, não pára nunca, a massa envolve tudo. Pequenos cordões que cantam marchinhas esgoeladas correm empurrando, varando a massa densa e ardente, e no coreto os clarins da banda militar estalam.

     Febrônio  fugiu do manicômio no  chuvoso dia de sexta-feira, 8 de fevereiro de 1935... Foi preso no dia 9 à tarde. Neste dia de domingo. 10 de fevereiro pela manhã, o Diário de notícias publica na primeira página de segunda seção:

     “ A sensacional fuga de Febrônio, do Manicômio Judiciário, onde se achava recolhido desde 1927,constituiu um verdadeiro pavor para a população carioca. A sua prisão, ocorrida na tarde de ontem, veio trazer a tranqüilidade ao espírito de todos, inclusive ao das autoridades que o procuravam.”

     Que repórter alarmado! Injuriou, meus senhores, o povo e as autoridades. Encostai-vos nas paredes, população! Mas eis que  na noite do dia chuvoso de domingo, 10 de fevereiro ouvimos:

“ Bicho Papão

Bicho Papão

Cuidado com o Febrônio

Que fugiu da Detenção...”

     Isso ouvimos no Largo do Machado, e eis que nosso amigo Miguel, que preferiu ir batucar em Dona Zulmira, lá também ouviu, naquele canto glorioso do Andaraí, a mesma coisa. Como se esparrama pelas massas da cidade esparramada essa improvisação de um dia? As patas inumeráveis batem no asfalto com desespero. O asfalto porventura não é vosso eito, escravos urbanos e suburbanos?

     A cuíca ronca, ronca, estomacal, horrível, é um ronco que é um soluço, e eu também soluço e canto, e vós também fortemente cantais bem desentoados com este mundo. A cuíca ronca no fundo da massa escura, dos agarramentos suados, do batuque pesadão, do bodum. O asfalto está molhado nesta noite de chuvoso domingo. Ameaça chuva, um trovão troveja. A cuíca de São Pedro também está roncando. O céu também sente fome, também ronca e soluça e sua de amargura¿

     Nesta mormacenta segunda-feira, 11 de fevereiro, um jornal diz que “ a batalha de confete de Largo do Machado esteve brilhantíssima”.

     Repórter cretiníssimo, sabei que não houve lá nem um só miserável confete. O povo não gastou nada, exceto gargantas,e dores e almas, que não custam dinheiro. Eis que ali  houve, e eu vi, uma batalha de roncos e soluços, e ali se prepararam batalhões para o Carnaval – nunca  jamais “ a grande festa do Rei Momo” – porém a grande insurreição armada de soluços.

Rubem Braga fev. 1935

terça-feira, 21 de maio de 2013

Que este amor não me cegue nem me siga.

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

Hilda Hilst

D. SEBASTIÃO, Rei de Portugal...


Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

(Fernando Pessoa em "Mensagem")

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A Estrela


Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alto luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

Manuel Bandeira

domingo, 19 de maio de 2013

Elegia: indo para o leito

VEM, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu Anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo)
sem Vestes.
As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
Ë dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

John Donne, traduzido/recriado por Augusto de Campos. In: Campos, Augusto de (1931- ). S. Paulo, Companhia das Letras, 1986 .

Em negrito a parte musicada por Caetano Veloso

.ELEGY: GOING TO BED
COME, Madam, come, all rest my powers defy ;
Until I labour, I in labour lie.
The foe ofttimes, having the foe in sight,
Is tired with standing, though he never fight.
Off with that girdle, like heaven’s zone glittering,
But a far fairer world encompassing.
Unpin that spangled breast-plate, which you wear,
That th’ eyes of busy fools may be stopp’d there.
Unlace yourself, for that harmonious chime
Tells me from you that now it is bed-time.
Off with that happy busk, which I envy,
That still can be, and still can stand so nigh.
Your gown going off such beauteous state reveals,
As when from flowery meads th’ hill’s shadow steals.
Off with your wiry coronet, and show
The hairy diadems which on you do grow.
Off with your hose and shoes ; then softly tread
In this love’s hallow’d temple, this soft bed.
In such white robes heaven’s angels used to be
Revealed to men ; thou, angel, bring’st with thee
A heaven-like Mahomet’s paradise ; and though
Ill spirits walk in white, we easily know
By this these angels from an evil sprite ;
Those set our hairs, but these our flesh upright.
; ; ; License my roving hands, and let them go
Before, behind, between, above, below.
O, my America, my Newfoundland,
My kingdom, safest when with one man mann’d,
My mine of precious stones, my empery ;
How am I blest in thus discovering thee !
To enter in these bonds, is to be free ;
Then, where my hand is set, my soul shall be.
; ; ; Full nakedness ! All joys are due to thee ;
As souls unbodied, bodies unclothed must be
To taste whole joys. Gems which you women use
Are like Atlanta’s ball cast in men’s views ;
That, when a fool’s eye lighteth on a gem,
His earthly soul might court that, not them.
Like pictures, or like books’ gay coverings made
For laymen, are all women thus array’d.
Themselves are only mystic books, which we
—Whom their imputed grace will dignify—
Must see reveal’d. Then, since that I may know,
As liberally as to thy midwife show
Thyself ; cast all, yea, this white linen hence ;
There is no penance due to innocence :
To teach thee, I am naked first ; why then,
What needst thou have more covering than a man?
John Donne (1572-1631)

sábado, 18 de maio de 2013

Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!



BANDEIRA, Manuel. "Lira dos cinquent'anos". Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Encantamento

Vi as mulheres

azuis do equinócio

voarem como pássaros cegos; e os seus corpos

sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos

vulcânicos. Os seus lábios vomitavam o fogo

que traziam de uma infância de magma

calcinado. A água ficava negra, à sua volta;

e os ramos das plantas submersas pelas chuvas

primaveris abraçavam-nas, puxando-as num

estertor de imagens. Tapei-as com o cobertor

do verso; estendi-as na areia grossa

da margem, vendo as cobras de água fugirem

por entre os canaviais. Espreitei-lhes

o sexo por onde escorria o líquido branco

de um início. Pude dizer-lhes que as amava,

abraçando-as, como se estivessem vivas; e

ouvi um restolhar de crianças por entre

os arbustos, repetindo-me as frases com uma

entoação de riso. Onde estão essas mulheres?

Em que leito de rio dormem os seus corpos,

que os meus dedos procuram num gesto

vago de inquietação? Navego contra a corrente;

procuro a fonte, o silêncio frio de uma génese.


Nuno Júdice

quinta-feira, 16 de maio de 2013

No mundo poucos anos, e cansados,

No mundo poucos anos, e cansados,
vivi, cheios de vil miséria dura;
foi-me tão cedo a luz do dia escura,
que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados
buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, não quer ventura,
não o alcançam trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e cara
pátria minha Alenquer; mas ar corruto
que neste meu terreno vaso tinha,

me fez manjar de peixes em ti, bruto
mar, que bates na Abássia fera e avara,
tão longe da ditosa pátria minha!

Luís de Camões

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Paragem


Com os meus bois,
Os meus bois que mugem e comem o chão,
Os meus bois parados,
De olhos parados,
Chorando,
Olhando...
O boi da minha solidão,
O boi da minha tristeza,
O boi do meu cansaço,
O boi da minha humilhação.
E esta calma, esta canga, esta obediência.


Publicado no livro Poesias (1948). Poema integrante da série Distâncias.
In: MILANO, Dante. Poesias. Pref. Ivan Junqueira. Petrópolis: Ed. Firmo, 1994. p.75. (Pedra mágica, 1)

terça-feira, 14 de maio de 2013

"Larga as parábolas sagradas" / "Laß die heil'gen Parabolen"

Larga as parábolas sagradas,
Deixa as hipóteses devotas,
E põe-te em busca das respostas
Para as questões mais complicadas.

Por que se arrasta miserável
O justo carregando a cruz,
Enquanto, impune, em seu cavalo,
Desfila o ímpio de arcabuz?

De quem é a culpa? Jeová
Talvez não seja assim tão forte?
Ou será Ele o responsável
Por todo o nosso azar e sorte?

E perguntamos o porquê,
Até que súbito – afinal –
Nos calam com a pá de cal –
Isto é resposta que se dê?

Heinrich Heine tradução de André Vallias

Laß die heil'gen Parabolen,
Laß die frommen Hypothesen -
Suche die verdammten Fragen
Ohne Umschweif uns zu lösen.

Warum schleppt sich blutend, elend,
Unter Kreuzlast der Gerechte,
Während glücklich als ein Sieger
Trabt auf hohem Roß der Schlechte?

Woran liegt die Schuld? Ist etwa
Unser Herr nicht ganz allmächtig?
Oder treibt er selbst den Unfug?
Ach, das wäre niederträchtig.

Also fragen wir beständig,
Bis man uns mit einer Handvoll
Erde endlich stopft die Mäuler -
Aber ist das eine Antwort?



HEINE, Heinrich; VALLIAS, André. Heine, hein? : Poeta dos contrários. São Paulo: Perspectiva; Goethe Institut, 2011.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

"Do not go gentle into that good night" / "Não vás tão docilmente":

Não vás tão docilmente nessa noite linda;
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendiaria,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda.
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Dylan Thomas (tradução de Augusto de Campos)

Do not go gentle into that good night

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn , too late, they grieved it on its way
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, em now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.



THOMAS, Dylan. "Do not go gentle into that good night". In: CAMPOS, Augusto de (trad. e org.). Poesia da recusa.  São Paulo: Perspectiva, 2006.


Para escutar, na voz do autor, essa famosa elegia, que Dylan Thomas escreveu ao saber que seu pai se encontrava à beira da morte, siga o seguinte link:

http://www.poets.org/viewmedia.php/prmMID/15377

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Fuso

Tento acertar meu relógio
pelo seu, parado, há tanto
com o suor do pulso, seco
a pulseira de couro partida
que ainda guarda algum sal.
Pai, a certeza de sua hora
me falta, e mesmo tendo
andado, não consegui chegar
a tempo, de pegar seu passo
emparelhar-me — servir
de companhia para sempre —
e passar à descendência
os firmes compromissos
pois me perdi pelo caminho.



FREITAS FILHO, Armando. Lar,. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

No cerco obscuro de umas asas gigantes/En el clos fosc d'unes ales gegants


No cerco obscuro de umas asas gigantes
que se dobram sobre mim e me dão abrigo,
a sombra me tem toda. Não me valem as palavras.
Tua cinza me enterra em velha brasa.
Tua língua me crava no silêncio.

Maria-Mercè Marçal
tradução de Ronald Polito


En el clos fosc d'unes ales gegants
que es pleguen sobre meu i em donen cobri,
l'ombra em té tota. No em valen els mots.
La teva cendra em colga en vell caliu.
La teva llengua em clava en el silenci.

Maria-Mercè Marçal

terça-feira, 7 de maio de 2013

Endymion (trecho)


O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.


Endymion (trecho)

A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o'er-darkened ways::
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
'Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven's brink.



 KEATS, John."From Endymion" / "Do Endymion". In: CAMPOS, Augusto de. Byron e Keats: Entreversos. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Editora Unicamp, 2009.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Aos Vindouros, se os Houver...

Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O'Neill, in 'Poemas com Endereço'

domingo, 5 de maio de 2013

O Cemitério Marinho


Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
— Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade — cheia de poder —
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
— Côncavo som, futuro, sempre, na alma.

Sabes tu, prisioneiro das folhagens,
Golfo roedor de tão finos gradis,
Claros segredos para os olhos cegos
Que corpo a um fim ocioso me compele,
Que fronte o atrai a tal rincão de ossadas?
Um lampejo aqui pensa em meus ausentes.

Sacro, encerrando um fogo sem matéria,
Pouca de terra oferecida à luz,
Prezo este sítio, que dominam tochas,
Composto de ouro, pedras e ciprestes,
Onde mármores tremem sobre sombras.
O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos.

Cadela esplêndida, afugenta o idólatra!
Quando, sorriso de pastor, sozinho
Apascento carneiros misteriosos
— Branco rebanho de tranqüilos túmulos —
Afasta dele as pombas temerosas
Os sonhos vãos, os anjos indiscretos.

Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.

Os mortos estão bem, sob esta terra
Que os aquece e resseca seu mistério.
O meio-dia no alto, o meio-dia
Quedo se pensa em si e a si convém.
Fronte completa e límpido diadema,
Eu sou em ti recôndita mudança!

Eu, somente eu, contenho os teus temores!
Meus pesares, limitações e dúvidas
São a falha de teu grande diamante...
Em sua noite grávida de mármores,
Entanto, um povo errante entre as raízes
Tomou já teu partido, lentamente.

Dissolveu-se na mais espessa ausência;
Bebeu vermelho barro a branca espécie;
Passou às flores o dom de viver.
Dos mortos, onde as frases familiares,
A arte pessoal, as almas singulares?
Tece a larva onde lágrimas nasciam.

O riso agudo de afagadas jovens,
Olhos e dentes, pálpebras molhadas,
O seio ousado desafiando o fogo,
Sangue a brilhar nos lábios que se rendem,
Últimos dons e dedos que os defendem
— Tudo se enterra e ao jogo outra vez volta.

E tu, grande alma, acaso um sonho esperas,
Despido, então, das cores de mentira
Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram?
Cantarás, quando fores vaporosa?
Tudo flui! Porosa é minha presença;
A sagrada impaciência também morre.

Magra imortalidade negra e de ouro,
Consoladora com horror laureada,
Que seio maternal fazes da morte
— O belo engano, a astúcia mais piedosa!
Quem não conhece e quem não repudia
Esse crânio vazio, o riso eterno?

Pais profundos, cabeças desertadas,
Que sob o peso de tantas pazadas
Terra sois, confundindo os nossos passos!
O verdadeiro verme, irrefutável,
Não para vós existe, sob a lousa
Ele de vida vive e não me deixa.

Amor, talvez? Talvez ódio a mim mesmo?
Seu dente oculto está de mim tão próximo
Que qualquer nome, acaso, lhe convém.
Que importa!... Ele vê, quer, sonha, ele toca:
Minha carne lhe agrada, e até no leito
Vivo de pertencer a este vivente.

Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eléia!
Feriste-me com tua flecha alada,
Que vibra, voa e que não voa nunca.
O som engendra-me e a flecha me mata!
O sol... Ah, que sombra de tartaruga
Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!

Não, não!... De pé! No instante sucessivo!
Rompe meu corpo, a forma pensativa!
Bebe meu seio, o vento que renasce!
Esta frescura a exalar-se do mar
A alma devolve-me... Ó, poder salgado!
Corramos à onda para reviver!

Sim, grande mar dotado de delírios,
Pele mosqueada, clâmide furada
Por incontáveis ídolos do sol,
Hidra absoluta, ébria de carne azul,
Que te mordes a fulgurante cauda
Num tumulto ao silêncio parecido,

Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!


VALÉRY, Paul. O cemitério marinho. Trad. de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia.


Le cimetière marin 
Paul Valéry

Ce toit tranquille, où marchent des colombes,
Entre les pins palpite, entre les tombes;
Midi le juste y compose de feux
La mer, la mer, toujours recommencee
O récompense après une pensée
Qu'un long regard sur le calme des dieux!

Quel pur travail de fins éclairs consume
Maint diamant d'imperceptible écume,
Et quelle paix semble se concevoir!
Quand sur l'abîme un soleil se repose,
Ouvrages purs d'une éternelle cause,
Le temps scintille et le songe est savoir.

Stable trésor, temple simple à Minerve,
Masse de calme, et visible réserve,
Eau sourcilleuse, Oeil qui gardes en toi
Tant de sommeil sous une voile de flamme,
O mon silence!... Édifice dans l'ame,
Mais comble d'or aux mille tuiles, Toit!

Temple du Temps, qu'un seul soupir résume,
À ce point pur je monte et m'accoutume,
Tout entouré de mon regard marin;
Et comme aux dieux mon offrande suprême,
La scintillation sereine sème
Sur l'altitude un dédain souverain.

Comme le fruit se fond en jouissance,
Comme en délice il change son absence
Dans une bouche où sa forme se meurt,
Je hume ici ma future fumée,
Et le ciel chante à l'âme consumée
Le changement des rives en rumeur.

Beau ciel, vrai ciel, regarde-moi qui change!
Après tant d'orgueil, après tant d'étrange
Oisiveté, mais pleine de pouvoir,
Je m'abandonne à ce brillant espace,
Sur les maisons des morts mon ombre passe
Qui m'apprivoise à son frêle mouvoir.

L'âme exposée aux torches du solstice,
Je te soutiens, admirable justice
De la lumière aux armes sans pitié!
Je te tends pure à ta place première,
Regarde-toi!... Mais rendre la lumière
Suppose d'ombre une morne moitié.

O pour moi seul, à moi seul, en moi-même,
Auprès d'un coeur, aux sources du poème,
Entre le vide et l'événement pur,
J'attends l'écho de ma grandeur interne,
Amère, sombre, et sonore citerne,
Sonnant dans l'âme un creux toujours futur!

Sais-tu, fausse captive des feuillages,
Golfe mangeur de ces maigres grillages,
Sur mes yeux clos, secrets éblouissants,
Quel corps me traîne à sa fin paresseuse,
Quel front l'attire à cette terre osseuse?
Une étincelle y pense à mes absents.

Fermé, sacré, plein d'un feu sans matière,
Fragment terrestre offert à la lumière,
Ce lieu me plaît, dominé de flambeaux,
Composé d'or, de pierre et d'arbres sombres,
Où tant de marbre est tremblant sur tant d'ombres;
La mer fidèle y dort sur mes tombeaux!

Chienne splendide, écarte l'idolâtre!
Quand solitaire au sourire de pâtre,
Je pais longtemps, moutons mystérieux,
Le blanc troupeau de mes tranquilles tombes,
Éloignes-en les prudentes colombes,
Les songes vains, les anges curieux!

Ici venu, l'avenir est paresse.
L'insecte net gratte la sécheresse;
Tout est brûlé, défait, reçu dans l'air
A je ne sais quelle sévère essence...
La vie est vaste, étant ivre d'absence,
Et l'amertume est douce, et l'esprit clair.

Les morts cachés sont bien dans cette terre
Qui les réchauffe et sèche leur mystère.
Midi là-haut, Midi sans mouvement
En soi se pense et convient à soi-même
Tête complète et parfait diadème,
Je suis en toi le secret changement.

Tu n'as que moi pour contenir tes craintes!
Mes repentirs, mes doutes, mes contraintes
Sont le défaut de ton grand diamant!...
Mais dans leur nuit toute lourde de marbres,
Un peuple vague aux racines des arbres
A pris déjà ton parti lentement.

Ils ont fondu dans une absence épaisse,
L'argile rouge a bu la blanche espèce,
Le don de vivre a passé dans les fleurs!
Où sont des morts les phrases familières,
L'art personnel, les âmes singulières?
La larve file où se formaient les pleurs.

Les cris aigus des filles chatouillées,
Les yeux, les dents, les paupières mouillées,
Le sein charmant qui joue avec le feu,
Le sang qui brille aux lèvres qui se rendent,
Les derniers dons, les doigts qui les défendent,
Tout va sous terre et rentre dans le jeu!

Et vous, grande âme, espérez-vous un songe
Qui n'aura plus ces couleurs de mensonge
Qu'aux yeux de chair l'onde et l'or font ici?
Chanterez-vous quand serez vaporeuse?
Allez! Tout fuit! Ma présence est poreuse,
La sainte impatience meurt aussi!

Maigre immortalité noire et dorée,
Consolatrice affreusement laurée,
Qui de la mort fais un sein maternel,
Le beau mensonge et la pieuse ruse!
Qui ne connaît, et qui ne les refuse,
Ce crâne vide et ce rire éternel!

Pères profonds, têtes inhabitées,
Qui sous le poids de tant de pelletées,
Êtes la terre et confondez nos pas,
Le vrai rongeur, le ver irréfutable
N'est point pour vous qui dormez sous la table,
Il vit de vie, il ne me quitte pas!

Amour, peut-être, ou de moi-même haine?
Sa dent secrète est de moi si prochaine
Que tous les noms lui peuvent convenir!
Qu'importe! Il voit, il veut, il songe, il touche!
Ma chair lui plaît, et jusque sur ma couche,
À ce vivant je vis d'appartenir!

Zénon! Cruel Zénon! Zénon d'Êlée!
M'as-tu percé de cette flèche ailée
Qui vibre, vole, et qui ne vole pas!
Le son m'enfante et la flèche me tue!
Ah! le soleil... Quelle ombre de tortue
Pour l'âme, Achille immobile à grands pas!

Non, non!... Debout! Dans l'ère successive!
Brisez, mon corps, cette forme pensive!
Buvez, mon sein, la naissance du vent!
Une fraîcheur, de la mer exhalée,
Me rend mon âme... O puissance salée!
Courons à l'onde en rejaillir vivant.

Oui! grande mer de delires douée,
Peau de panthère et chlamyde trouée,
De mille et mille idoles du soleil,
Hydre absolue, ivre de ta chair bleue,
Qui te remords l'étincelante queue
Dans un tumulte au silence pareil

Le vent se lève!... il faut tenter de vivre!
L'air immense ouvre et referme mon livre,
La vague en poudre ose jaillir des rocs!
Envolez-vous, pages tout éblouies!
Rompez, vagues! Rompez d'eaux rejouies
Ce toit tranquille où picoraient des focs!

sábado, 4 de maio de 2013

Acalanto


Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
ao aconchego de um outro corpo morno.

Paulo Henriques Britto

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Ver


O dia. Arcos da manhã
em nuvem. Riscos de luz
como vidros arriados.

O claro. A praia armada
entre a sintaxe do verde.

Áreas do ar. Aves
navegando as lajes
do azul.


Antonio Carlos Secchin