domingo, 30 de agosto de 2009

Triunfo da morte

Triunfo da morte

Francesco Petrarca
(tradução de Luís Vaz de Camões)

Aquela bela dama e gloriosa,
Que hoje é nu ’spírito e pouca terra,
E foi alta coluna e valorosa;
Tornava com grande honra de sua guerra,
Deixando já vencido o grande inimigo,
Que com seu doce fogo o mundo aterra.
Não com mais armas que respeito altivo,
Honestidade em rosto e pensamento,
Coração casto e de virtude amigo.
Grande espanto era ver tal vencimento,
As armas d’amor rotas e desfeitas,
E os vencidos dele em mor tormento.
A bela dama e as outras eleitas
Se vinham gloriando da vitória,
Em bela esquadra juntas e restreitas.
Poucas eram, que rara é vera glória,
Mas dinas, da primeira à derradeira,
De claríssimo poema e de história.
Traziam, por insígnia, na bandeira
Em campo verde um branco armelino
D’ouro fino, e topazes a coleira.
Não humano, certamente, mas divino
Era o seu doce andar, e o que diziam:
Ditosa é a que nasce a tal destino.
Estrelas e sol em meio pareciam,
Em cujo resplendor o seu consiste;
De rosas coroadas todas iam.
Como nobre coração que honra aquiste,
Cada uma em sua virtude se alegra,
Quando outra insígnia vi escura e triste,
E uma fera dona em veste negra.
Com tal furor, qual eu não sei se atrás,
No tempo dos gigantes fosse em Flegra.
Chamou, e disse: donzela, tu que vás
De beleza e virtude alterada,
De tua vida o termo não saberás?
Eu sou a importuna acelerada,
Chamada de vós, gente surda e cega,
A quem morte vem antecipada.
Eu sou a que matei a gente grega
E troiana, e no último os romãos,
Que todos minha foice corta e cega.
Não deixo povos gentios nem cristãos,
Chego quando por mim menos se espera,
Atalho mil pensamentos, todos vãos.
E a vós, quando mais ledo o viver era,
Endereço meu curso, antes que a fortuna
Misture em vossa doce a sua fera.
Já nestas tu não tens razão alguma,
E em mim pouca, que em minha morte,
Respondeu a que no mundo foi uma,
Outrem sei a quem mais dura é a sorte,
Cuja vida do meu viver depende,
Que o morrer, quanto a mim, será deporte.
Qual é quem grave coisa e nova entende,
Ou vê o que no princípio não lembrou,
E ora se maravilha, ora resprende.
Tal foi a cruel; e depois que cuidou
Um pouco em si, disse: bem conheço eu
Se dá o meu golpe em cheio ou se errou.
Depois, com melhor semblante e menos seu
Disse: tu que a fremosa esquadra guias,
Inda não experimentaste o tosco meu.
Mas, se de meu conselho algo te fias,
Que forçar te posso: por melhor se tem
Fugir velhice e os seus tristes dias.
Eu sou disposta a te fazer um bem
Que não costumo; e é que tua alma vá
Sem aquele medo e dor que a morte tem.
Como apraz ao Senhor, que em cima está,
E rege o céu, e a terra, e o abisso,
Farás de mim o que dos outros será.
Em respondendo assi, eis d’improviso
De mortos se cobriu toda a campanha,
De multidão que excede o humano siso.
A índia, o Cataio, África e Espanha,
Tudo estava coberto até os extremos
Daquela infinita turba manha.
Entre eles, os que por felices temos,
Pontífices, e reis, e imperadores,
Que ora são nus e pobres, como vemos.
Que foi de suas riquezas e primores?
Dos ceptros e vestiduras reais?
Das mitras e das purpúreas cores?
Triste o que a esperança põe em bens mortais!
Mas quem a não põe? Que se depois se achar
Enganado, o remédio é por demais.
Ó cegos que aproveita o afadigar?
Que logo vos tornais à madre antiga,
E muito pouco o vosso nome há-de durar.
E se alguma há, entre vós, útil fadiga,
Ou se são todas puras vaidades,
Qual mais souber de vós esse mo diga.
Que val ganhardes reinos e cidades,
Fazerdes tributárias muitas gentes,
Forçardes nações livres e vontades?
Que achais nessas vitórias eminentes?
Trocar sangue por terra e por tesouro?
Melhor sabe na paz aos prudentes
O pão e água no pau, que a vós no ouro.
Mas por não prosseguir tão longo tema
Acabarei, e a meu lavor me torno.
E digo que já era na hora extrema
Aquela breve vida gloriosa,
No passo em que nenhum há que não trema.
Com ela estava outra valerosa
Companhia de donas, que esperava
Saber se alguma morte há piedosa.
Atentas eram quantas ali estavam
A contemplar o fim que ela fazia,
Que tal convém fazer aos que acabam.
Estando assi a nobre companhia,
Da loura cabeça, morte lhe cortou,
A trança que seus cabelos tecia.
Assi do mundo a mais bela flor levou,
Não por ódio, mas por mais cedo mostrar
Que para reinar na glória se criou.
Tristes prantos e querelas ouvi dar,
Sendo os seus belos olhos já enxutos,
De cujo nome me soía abrasar.
Entre gritos e lágrimas e lutos
Estava ela só leda e calada,
De seu casto viver colhendo os frutos.
Vai-te em paz, alma bem-aventurada,
Diziam, e era assi; mas nada val
Contra a morte cruel e acelerada.
Que será de nós? Pois esta que era tal
Ardeu em tão breve tempo e acabou
falsa e cega esperança humanall
Se de lágrimas a terra se banhou,
Com piedade daquela alma gentil,
Sabe-o quem o viu e experimentou.
Na hora prima do dia sexto d’Abril,
Em que fui preso a morte me desatou;
Que assi muda fortuna o seu estilo vil.
Quem de dura servidão mais se queixou,
Ou da morte, como eu da liberdade
E da vida, que sem ela me ficou?
Devido era ao mundo e à idade
Não preceder a da véspera ao da prima,
Nem tirar-se-lhe a ele a dignidade.
Qual fosse a sua dor que não se estima
Ousado só a cuidá-lo eu não seria,
Quanto mais a escrevê-lo em prosa ou rima.
Acabada é a virtude e a cortesia
Se ouvia lamentar junto do leito
Pelas donas e amigas que ali havia.
Quem verá mais em dama auto perfeito,
Quem ouvirá seu falar de saber cheio,
E a voz de tão suave deleito?
O espírito, por deixar o doce seio
Com todas as virtudes, anojado,
Fazia em toda a parte o ar sereio.
Nenhum dos adversários foi ousado
De aparecer ali com vista escura,
Até que a morte o assalto houve acabado.
Deposto já o medo e a tristura,
Ao belo rosto cada uma olhava,
Por desesperação feita segura.
Não como chama, que por força acaba,
Mas que por si se gasta e consume,
Se foi dentre nós a que o mundo ornava.
A modo de um suave e claro lume,
A que falta sustância e nutrimento,
a Que no fim tem usado costume;
Mais alva que a neve que sem vento
Em gracioso campo se vê cair,
Estava ela no fim do passamento.
Quase em belos olhos um doce dormir,
Sendo o espírito já partido dela!
Parecia o seu morrer o ressurgir,
E o seu lindo rosto morte bela!

Trionfo della Morte

Quella leggiadra e glorïosa donna,
ch'è oggi ignudo spirto e poca terra
e fu già di valor alta colonna,
tornava con onor da la sua guerra,
allegra, avendo vinto il gran nemico,
che con suo' ingegni tutto 'l mondo atterra,
non con altr'arme che col cor pudico
e d'un bel viso e de' pensieri schivi,
d'un parlar saggio e d'onestate amico.
Era miracol novo a veder ivi
rotte l'arme d'Amore, arco e saette,
e tal morti da lui, tal presi e vivi.
La bella donna e le compagne elette,
tornando da la nobile vittoria,
in un bel drappelletto ivan ristrette.
Poche eran, perché rara è vera gloria;
ma ciascuna per sé parea ben degna
di poema chiarissimo e d'istoria.
Era la lor vittorïosa insegna
in campo verde un candido ermellino,
ch'oro fino e topazi al collo tegna.
Non uman veramente, ma divino
lor andar era e lor sante parole:
beato s'è qual nasce a tal destino.
Stelle chiare pareano; in mezzo, un sole
che tutte ornava e non togliea lor vista;
di rose incoronate e di viole.
E come gentil cor onore acquista,
così venia quella brigata allegra,
quando vidi un'insegna oscura e trista:
et una donna involta in veste negra,
con un furor qual io non so se mai
al tempo de' giganti fusse a Flegra,
si mosse e disse: - O tu, donna, che vai
di gioventute e di bellezze altera,
e di tua vita il termine non sai,
io son colei che sì importuna e fera
chiamata son da voi, e sorda e cieca
gente a cui si fa notte inanzi sera.
Io ho condotto al fin la gente greca
e la troiana, a l'ultimo i Romani,
con la mia spada la qual punge e seca,
e popoli altri barbareschi e strani;
e giugnendo quand'altri non m'aspetta,
ho interrotti mille penser vani.
Or a voi, quando il viver più diletta,
drizzo il mio corso inanzi che Fortuna
nel vostro dolce qualche amaro metta. -
- In costor non hai tu ragione alcuna,
ed in me poca; solo in questa spoglia
(rispose quella che fu nel mondo una).
Altri so che n'avrà più di me doglia,
la cui salute dal mio viver pende;
a me fia grazia che di qui mi scioglia. -
Qual è chi 'n cosa nova gli occhi intende,
e vede ond'al principio non s'accorse,
di ch'or si meraviglia e si riprende,
tal si fe' quella fera, e poi che 'n forse
fu stata un poco: - Ben le riconosco, -
disse - e so quando 'l mio dente le morse. -
Poi col ciglio men torbido e men fosco
disse: - Tu che la bella schiera guidi
pur non sentisti mai del mio tosco.
Se del consiglio mio punto ti fidi,
ché sforzar posso, egli è pur il migliore
fuggir vecchiezza e' suoi molti fastidi.
I' son disposta a farti un tal onore
qual altrui far non soglio, e che tu passi
senza paura e senz'alcun dolore. -
- Come piace al Signor che 'n cielo stassi
et indi regge e tempra l'universo,
farai di me quel che degli altri fassi. -
Così rispose: ed ecco da traverso
piena di morti tutta la campagna,
che comprender nol pò prosa né verso;
da India, dal Cataio, Marrocco e Spagna
el mezzo avea già pieno e le pendici
per molti tempi quella turba magna.
Ivi eran quei che fur detti felici,
pontefici, regnanti, imperadori;
or sono ignudi, miseri e mendici.
U' sono or le ricchezze? u' son gli onori
e le gemme e gli scettri e le corone
e le mitre e i purpurei colori?
Miser chi speme in cosa mortal pone
(ma chi non ve la pone?), e se si trova
a la fine ingannato è ben ragione.
O ciechi, el tanto affaticar che giova?
Tutti tornate a la gran madre antica,
e 'l vostro nome a pena si ritrova.
Pur de le mill' è un'utile fatica,
che non sian tutte vanità palesi?
Chi intende a' vostri studii sì mel dica.
Che vale a soggiogar gli altrui paesi
e tributarie far le genti strane
cogli animi al suo danno sempre accesi?
Dopo l'imprese perigliose e vane,
e col sangue acquistar terre e tesoro,
vie più dolce si trova l'acqua e 'l pane,
e 'l legno e 'l vetro che le gemme e l'oro.
Ma per non seguir più sì lungo tema,
tempo è ch'io torni al mio primo lavoro.
I' dico che giunta era l'ora estrema
di quella breve vita glorïosa,
e 'l dubbio passo di che 'l mondo trema,
et a vederla un'altra valorosa
schiera di donne non dal corpo sciolta,
per saper s'esser pò Morte pietosa.
Quella bella compagna era ivi accolta
pure a vedere e contemplare il fine
che far convensi, e non più d'una volta:
tutte sue amiche e tutte eran vicine.
Allor di quella bionda testa svelse
Morte co la sua mano un aureo crine:
così del mondo il più bel fiore scelse,
non già per odio, ma per dimostrarsi
più chiaramente ne le cose eccelse.
Quanti lamenti lagrimosi sparsi
fur ivi, essendo que' belli occhi asciutti
per ch'io lunga stagion cantai et arsi!
E fra tanti sospiri e tanti lutti
tacita e sola lieta si sedea,
del suo ben viver già cogliendo i frutti.
- Vattene in pace, o vera mortal dea! -
diceano; e tal fu ben, ma non le valse
contra la Morte in sua ragion sì rea.
Che fia de l'altre, se questa arse et alse
in poche notti e sì cangiò più volte?
O umane speranze cieche e false!
Se la terra bagnar lagrime molte
per la pietà di quella alma gentile,
chi 'l vide il sa; tu 'l pensa che l'ascolte.
L'ora prima era, il dì sesto d'aprile,
che già mi strinse, et or, lasso, mi sciolse:
come Fortuna va cangiando stile!
Nessun di servitù giammai si dolse,
né di morte, quant'io di libertate
e de la vita ch'altri non mi tolse.
Debito al mondo e debito a l'etate,
cacciar me innanzi ch'ero giunto in prima,
né a lui torre ancor sua dignitate.
Or qual fusse il dolor qui non si stima,
ch'a pena oso pensarne, non ch'io sia
ardito di parlarne in versi o 'n rima.
- Virtù more, bellezza e leggiadria! -
le belle donne intorno al casto letto
triste diceano - Omai di noi che fia?
chi vedrà mai in donna atto perfetto?
chi udirà il parlar di saver pieno
e 'l canto pien d'angelico diletto? -
Lo spirto, per partir di quel bel seno,
con tutte sue virtuti, in sé romito,
fatto avea in quella parte il ciel sereno.
Nessun degli avversari fu sì ardito
ch'apparisse già mai con vista oscura
fin che Morte il suo assalto ebbe fornito.
Poi che deposto il pianto e la paura
pur al bel volto era ciascuna intenta,
per desperazïon fatta sicura,
non come fiamma che per forza è spenta,
ma che per sé medesma si consume,
se n'andò in pace l'anima contenta,
a guisa d'un soave e chiaro lume
cui nutrimento a poco a poco manca,
tenendo al fine il suo caro costume.
Pallida no, ma più che neve bianca
che senza venti in un bel colle fiocchi,
parea posar come persona stanca.
Quasi un dolce dormir ne' suo' belli occhi,
sendo lo spirto già da lei diviso,
era quel che morir chiaman gli sciocchi:
Morte bella parea nel suo bel viso.

Francesco Petrarca

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