segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Parece que erraram a conta



            Janeiro de 1963: faço 50 anos.
            Não é divertido. Para falar com franqueza, eu preferia (e obscuramente tenho vontade de dizer: eu merecia) fazer quarenta anos. Esta a idade que me apraz imaginar que possuo. Não tenho saudade de meus 30 anos, quero dizer _ não teria vontade de voltar a ser como eu era aos 30 anos _ e muito menos aos 20. Mas, 40 acho que faria uma boa conta.
            Sei que não adiante reclamar, mas acho que fui roubado. Contaram-me dez anos a mais. Naturalmente somaram tudo, tudo, inclusive o tempo que passei, vamos dizer, perdendo tempo. Por exemplo: andando atrás de mulher que não queria saber de mim. Isso não devia valer. Que me marcassem agora 45 anos vá lá. Cinqüenta, francamente, acho um pouco demais, e um pouco demasiado de repente. Parece que não há remédio senão aceitar. Aceito resmungando, como quem paga, de má vontade, uma conta de bar que está achando exagerada.
            Cinqüenta anos... Uma injustiça, sem dúvida alguma. Logo comigo, que tinha tanta vocação para ser rapaz!
            Sou, na verdade, um velho rapaz, e faço meus 50 anos sem rir, sem chorar; sem chorar, sem rir. Resmungando, é natural. O momento seria bom para uma pausa, um balanço, um exame de consciência. Vou pensar nisso; mas agora não, ainda estou meio chocado com essa brincadeira boba.
            A verdade é que a gente não envelhece por igual, como essas frutas dos pomares bem-cuidados. A gente envelhece como goiaba da roça; uma parte está de vez, outra já madura, um pedaço ainda está verde e já outro preto, bichado.
            Essa comparação não deve ser minha; acho que já li isso em alguma parte, talvez em Gilberto Amado; parece coisa dele.
            Para disfarçar, e como tinha de viajar, arranjei as coisas para passar o dia de meu aniversário em viagem. Saí cedo de Rabat em automóvel para pegar em Casablanca um avião que me levaria a Lisboa, onde no dia seguinte embarcaria para o Rio. Mas o aeroporto de Lisboa estava trancado por um nevoeiro, e como as notícias eram incertas passei o dia entre o aeroporto, o hotel e a agência da companhia; acabei fazendo uma escala absurda em Madri, que é mais longe do que Lisboa.
            Essa confusão aborrecida me deu a vaga impressão de estar entrando clandestinamente na minha segunda metade de século. Metade, por sinal, bem menor que a primeira...
            Só há um consolo verdadeiro: a companhia. Fazendo 50 anos em 1963 eu me igualo, pelo menos em idade, a duas das mais altas e puras instituições cariocas. Vinicius de Moraes e o bondinho do Pão de Açúcar. O poeta faz 50 anos em 19 de outubro; o bondinho fez agora mesmo, em janeiro, um pouco depois de mim.
            Nesses 50 anos de funcionamento, esse bondinho teve raros acidentes, já deu muito susto e já ameaçou se despencar no abismo, mas nunca matou ninguém. Como o Vinicius de Moraes, cuja poesia também tantas vezes nos leva sobre a terra e o mar em visões de beleza, entre nuvens e luas... Bons companheiros!
            Mas eu preferia fazer quarenta.

                                                                       Rio de Janeiro, 1963

Rubem Braga
“A traição das elegantes”
7ª edição
Record, 2008


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